Por: Leticia Helena Malzone: Advogada militante em Direito de Família e Sucessões desde 1999 e conciliadora das Varas da Família até 2010. Também atua em direito civil, imobiliário e internacional.
Recentemente nos deparamos com uma denúncia que parece ter saído do século passado: planos de saúde exigindo aval do marido para a inserção de DIU no corpo da mulher. Exigem a assinatura do cônjuge como requisito para autorização do procedimento.
O DIU é um dispositivo intrauterino, em formato de T, introduzido na mulher através do colo do útero e tem como principal objetivo impedir a gravidez. Ele varia em hormonais e não hormonais. Os não hormonais, de cobre e prata, utilizados para a contracepção. E o hormonal também pode ser utilizado para tratamento de doenças crônicas, como a endometriose.
Algumas cooperativas de São Paulo e Minas Gerais, ao impor esta exigência, retiram a capacidade da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, que perde sua independência e, consequentemente, haverá uma diminuição da qualidade de vida dessas mulheres, além de ser uma prova de uma postura retrógrada, patriarcal e abusiva.
Embasar essa exigência à Lei 9.263 de 1996 é indevida, vez que não há previsão nessa lei sobre métodos contraceptivos reversíveis como o DIU. Não se trata de esterilização voluntária. Aqui estamos diante de uma violência à autonomia da paciente. Há evidente violação a autonomia sobre o próprio corpo da mulher.
O Procon-SP está pedindo explicações para 11 planos de saúde e eles têm prazo para prestar os esclarecimentos, indicando qual o fundamento legal para essa exigência. O órgão vai multar e punir as empresas que estiverem utilizando desse recurso para se negar a cobrir o procedimento.
A decisão de utilizar o DIU é exclusiva da mulher, apoiada pelas orientações de seu médico. Mas essa discussão traz à tona a necessidade de se conversar sobre a autonomia do corpo.
A autonomia é um direito fundamental. Segundo agência da ONU, quase metade da população feminina, em 57 países em desenvolvimento, não tem autonomia sobre o próprio corpo. E isto pode ser verificado quando há mutilação genital, quando um homem engravida uma mulher contra a sua vontade, no estupro, no teste de virgindade…
Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), agência de desenvolvimento internacional da ONU que trata de questões populacionais, sendo responsável por ampliar as possibilidades de mulheres e jovens levarem uma vida sexual e reprodutiva saudável, para essas mulheres nega-se o direito de decidir sobre fazer sexo com seus parceiros, utilizar contraceptivos ou buscar por assistência médica.
Pela primeira vez, um relatório das Nações Unidas foca em autonomia ao próprio corpo: o poder e a capacidade de fazer escolhas sobre seu corpo, sem medo de violência ou de ter alguém decidindo por você.
O relatório mostra que:
- Apenas 55% das mulheres estão completamente empoderadas para fazer escolhas a respeito de cuidados de saúde, contracepção e à habilidade de dizer sim ou não para o sexo;
- Apenas 75% dos países garantem acesso total e equânime à contracepção;
- Cerca de 80% dos países têm leis apoiando a saúde sexual e o bem-estar
- Apenas 56% dos países têm leis e políticas apoiando a educação sexual.
- 43 países não têm legislação abordando o estupro marital (estupro por cônjuge);
- 20 países ou territórios têm leis que liberam um estuprador de um processo criminal se este se casar com a vítima.
O casamento infantil também é um desdobramento que gera evasão escolar, além de responder pelas taxas mais altas de mortalidade materna e infantil. Inclui-se aí também, a probabilidade 22% maior de sofrer violência de seu parceiro do que mulheres adultas.
O Brasil ocupa o 4º lugar no mundo em incidência do casamento precoce. O elemento racial e de classe social tem papel fundamental. Não podemos considerar uma escolha quando estamos lidando com muitas mulheres que vivem abaixo da linha da pobreza e foram estupradas em suas próprias casas por familiares.
Em 2019, a Lei 13.811 alterou o artigo 1520 do Código Civil para impossibilitar o casamento de menores de 16 anos. Antes, em 2005, a Lei 11.106 alterou o artigo 107 do Código Penal, que autorizava o casamento para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal.
A UNICEF emitiu um alerta, em março passado, informando que 10 milhões de meninas a mais estão em risco de casamento infantil devido à COVID-19.
O fechamento de escolas, o estresse econômico, gravidez e morte dos pais estão colocando as meninas em maior risco de casamento infantil.
Um retrocesso se avista, pois, a Covid-19 piorou ainda mais a situação. A perda de empregos e o aumento da insegurança podem forçar as famílias a casar suas filhas para aliviar encargos financeiros.
Em todo o mundo, estima-se que 650 milhões de meninas e mulheres vivas hoje se casaram antes de completar 18 anos, sendo que, metade desses casamentos ocorrendo no Brasil, Bangladesh, Etiópia, Índia e Nigéria.
Serviços de saúde sexual e reprodutiva, retorno à escola e medidas de proteção social para as famílias podem reduzir esse panorama.