As relações familiares em tempo de pandemia

A psicanalista Heloisa Mamede: “famílias que eram bem estruturadas estão conseguindo uma nova harmonia, recriando um ambiente saudável”

         Em tempo de pandemia, em que as pessoas passaram a viver em confinamento, famílias e, principalmente, os casais tiveram que reaprender a conviver. Para saber mais sobre as novas relações familiares com o advento do isolamento social em virtude da covid, o Portal Medicina e Saúde entrevistou a psicanalista Heloisa Mamede Silva Gonzaga, de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ela também é professora aposentada da UFMG, psicóloga e psicopedagoga.

Dra. Heloisa, o que tivemos que aprender ou reaprender nesses novos tempos?

Para que possamos falar em “reaprender”, é necessário retornar no tempo antes do confinamento em que a sociedade vivia uma rotina de obrigações no trabalho ou na escola produzindo uma vivência com múltiplas atividades fora de casa. Vivendo em uma sociedade de consumo, quanto mais se adquiria de bens materiais, mais se desejava. Esse consumismo, muitas e muitas vezes, mascarava desajustes familiares. Eis que surge a pandemia e com ela o desamparo. Famílias entraram em confinamento, criaram-se os home office, pais que entregavam seus filhos para serem educados pelas escolas, muitas vezes em tempo integral, tiveram que cuidar, entreter e conhecer suas crianças e seus adolescentes por dias e dias. Enfim, “reaprender” a conviver.

Esse aprendizado/reaprendizado levou a um fortalecimento ou não das relações familiares?

Depende das relações familiares que existiam antes do confinamento. Famílias que eram bem estruturadas estão conseguindo uma nova harmonia, recriando um ambiente saudável e consequente fortalecimento das relações fragilizadas pela pandemia. Ao contrário, famílias que existiam com laços desgastados, encobertos pela rotina diária em que a convivência era escassa, estão se deteriorando e adoecendo perante essa nova realidade.

No caso de um desgaste da relação, há como recuperá-lo?

Depende da profundidade em que esse desgaste se encontra. A ajuda de profissionais especializados pode restaurar essas relações e construir um novo encontro familiar.

O confinamento é que leva a esse desgaste?

Esse é um ótimo questionamento. Seguramente que não. Nesse caso, o confinamento produziu um “acordar” para a frágil realidade que já se encontrava presente, mas não visível.

É possível dizer que em uma relação desgastada há efeitos positivos para os filhos? Quais seriam eles?

Como já expus acima, depende do desgaste que existia na família antes da pandemia. A positividade do fortalecimento dos laços entre pais e filhos e entre eles se estrutura no equilíbrio e na maturidade do par parental. A figura paterna no mundo contemporâneo está muito enfraquecida e a mulher-mãe luta para preencher espaços, tentando dar um formato de família feliz. O confinamento traz essas questões “à tona” e, dependendo como isso é trabalhado, pode sim trazer resultados positivos para os filhos.

Quais os efeitos negativos para os filhos em uma relação desgastada?

Vários transtornos emocionais como, medo, angústia, sentimento de culpa por pensar que são responsáveis desse mal-estar familiar e também transtornos fisiológicos como, perda de apetite, depressões e outros.

A pandemia está levando muita gente a refletir sobre as relações familiares, o conceito de família. Isto vem acontecendo mesmo?

Se é que podemos falar em efeito positivo não só dessa pandemia, como de todas as outras que já ocorreram, a reflexão, “um parar para pensar”, tem sido um fator significativo para considerar o lugar que cada um vem ocupando na formação familiar.

Como à senhora observa tais mudanças?

No conceito de família no mundo atual. Antes, a família era pais e filhos numa convivência formalizada e padronizada através do casamento. Hoje, a família contemporânea pode ser assim, mas é também: avós criando netos, pais casados duas ou mais vezes, filhos convivendo só com o pai ou só com a mãe, filhos convivendo com irmãos de outros casamentos e outras construções. O confinamento e a convivência estreita, todos os dias, trouxeram, obrigatoriamente, todas essas questões para o âmbito familiar.

Há alguma fórmula para ser feliz, ou uma família ser feliz?

Não há fórmulas. Mas, acredito numa lei básica: respeitar as diferenças. Uma família, qualquer que ela seja, deve ser baseada num tripé: Amor, respeito e cuidados. Não se nasce sabendo amar, ensina-se. Pais devem cuidar dos filhos, mas filhos também devem cuidar dos pais. O respeito deve ser mútuo. O mandamento nos diz: Honrarás teu pai e tua mãe, mas até que ponto? Pois, pai e mãe também devem honrar seus filhos, com respeito e dignidade.

As diferenças não apenas entre os casais, mas em todos os membros da família, exacerbaram com o confinamento?

Sim. Essa afirmação é resultante de diferentes relatos que já presenciei. No princípio, de uma maneira suave, mas que foi se agravando à medida que o confinamento prosseguia. A resultante é que a intolerância das diferenças tem alcançado reações tão negativas que já levaram ao pensamento de uma separação definitiva entre os casais. Por outro lado, casais que estão trabalhando essa nova convivência estão trazendo benefícios para toda a família.

As pessoas ficaram mais intolerantes?

Depende dos laços que existiam antes. Não propriamente intolerantes, mas sim desamparados perante uma situação nunca antes vivida.

E o amor, como ele está sendo percebido ou vivido?

Quando perguntaram a Sócrates o que é o amor, ele respondeu: “O amor é, portanto, desejo do belo e do bem”. Esse pensamento contém o que se espera dos relacionamentos familiares. Para que o amor tenha espaço, é necessário que o desejo de cada um seja respeitado. O amor e a compreensão não só na família como na sociedade, estava em fase de extinção. Creio que agora está existindo um retorno. A vida vazia do consumismo ceder lugar a um pensamento: pessoas precisam ser amadas por outras pessoas.

Ele é a cura das relações?

No meu pensamento, é sim. A palavra “amor” é abstrata e não traz consigo adjetivo algum. Não existe amor verdadeiro, amor doentio e nenhum outro complemento. O amor traz em si um desejo completo de estar bem consigo mesmo e com o outro. É generosidade, é compreensão, é suportar as diferenças, é conservar a subjetividade e a sua própria originalidade e abrir espaço para que o outro as conserve também. A capacidade de amar com tudo que ele traz é universal.

O que temos ainda aprendido com a pandemia?

A pandemia trouxe o luto e o sofrimento pela perda física de    inúmeras pessoas queridas. Trouxe o desamparo perante esse vírus, essa forma elementar, invisível contra o qual não podemos lutar, tendo que depender de ferramentas tecnológicas para nos comunicar com os nossos familiares. Mas trouxe também uma nova realidade, embora antiga, que a família é o nosso porto seguro e que a ela podemos voltar renovando sempre nosso desejo de paz e tranquilidade.

Para finalizar, a senhora tem conhecimento de muitas separações? Mais separações que uniões? A mídia em geral diz que sim.

As separações que estão ocorrendo relacionam se mais com casais em fase de namoro ou que se relacionavam mais intimamente, mas residindo separados. Muitos estavam ainda em uma convivência inicial e por motivos resultantes de confinamento e falta de contato, optaram por se afastarem. Outros, que viviam em locais distantes não conseguiram viabilizar a convivência. Alguns em que a relação já estava desgastada resolveram por uma separação definitiva. Mas em relação a família, as separações nesse momento que estamos vivendo ficam muito difíceis, e o fato de estarem juntos ajuda na compreensão das diferenças e a trabalhar para aceita-las.

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