Cardiologista pediátrica e presidente da SOCESP, Dra. Ieda Jatene: “com o passar do tempo e com os avanços tecnológicos, o tratamento passou a ser possível já nos primeiros dias ou meses de vida”
As cardiopatias congênitas merecem uma atenção especial da área de saúde, pois atualmente o tratamento é possível nos primeiros meses de vida. Nessa entrevista ao Portal Medicina e Saúde, a cardiologista pediátrica, especialista em cardiopatias congênitas e presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo-SOCESP, Ieda Jatene, fala sobre intervenções intraútero, a desigualdade com relação ao atendimento da doença no Brasil, reivindicação dos especialistas, necessidade da ampliação do sistema neonatal no país, entre outros aspectos. Confira:
Dra. Ieda, qual a realidade da doença no Brasil?
Mais de 50% dos recém-nascidos que necessitariam de uma cirurgia para correção de cardiopatia congênita ficam sem atendimento. Em tempos de pandemia estima-se que este percentual de “não atendimento” possa ter chegado a 70%. Na década de 70, crianças portadoras de cardiopatia congênita, com menos de um ano de vida, raramente eram operadas. Com o passar do tempo e com os avanços tecnológicos, o tratamento passou a ser possível já nos primeiros dias ou meses de vida da criança.
O que é uma cardiopatia congênita?
As cardiopatias congênitas são doenças decorrentes de malformações da estrutura do coração e do sistema circulatório e aparecem durante o desenvolvimento fetal, geralmente nas primeiras semanas de gestação. Dados publicados na Diretriz Brasileira de Cardiologia Fetal atestam que entre 1.000 nascidos vivos de seis a 12 bebês são portadores desta anomalia, sendo que as ocorrências intraútero podem ser até cinco vezes maiores.
Quando detectado, o problema pode ser corrigido ainda durante a gravidez?
As intervenções intraútero são restritas a um número muito pequeno de fetos. O cardiologista fetal define se a cardiopatia diagnosticada intraútero necessita tratamento e preenche critérios que justifiquem o manejo por intervenção intrauterina, ou se a terapêutica deve ser instituída no período pós-natal imediato.
Como é o quadro das cardiopatias congênitas no Brasil?
No Brasil, registramos 25.700 novos casos de cardiopatias congênitas por ano, distribuídos da seguinte forma: Região Norte (2.758), Nordeste (7.570), Sudeste (10.112), Sul (3.329) e Centro-Oeste (1.987). Porém, o atendimento especializado não acompanha este “mapa”. Existem 67 serviços credenciados no Ministério da Saúde, que realizam cirurgia cardíaca pediátrica, mas a maioria está concentrada nas Regiões Sul e Sudeste (62%). De acordo com os dados publicados na mesma Diretriz, esta falta de homogeneidade faz com que as Regiões Norte e Nordeste deixem de realizar o procedimento em, respectivamente, 93,5% e 77,4% dos casos cirúrgicos. Mas, apesar de serem os principais algozes da morbimortalidade infantil, especialmente no período neonatal, nem todas as cardiopatias congênitas necessitam de cirurgia. Apenas metade dos casos trazem alterações importantes, com necessidade de tratamento intervencionista ou correção cirúrgica já no primeiro ano.
Como melhorar o atendimento?
Os nascimentos no país sofrem uma curva descendente contínua desde 2015. Levantamento da SOCESP, com base em dados oficiais, mostra que, em 2015 foram mais de 3 milhões de brasileirinhos. Em 2020 este número foi de 2,6 milhões, mesmo patamar de 2021. Esta espécie de “controle da natalidade espontâneo”, somada à ampliação da assistência neonatal, pode contribuir para que os serviços alcancem, cada vez mais, quem precisa de ajuda especializada. Uma das reivindicações dos especialistas para minimizar os efeitos das cardiopatias congênitas é a realização da ultrassonografia precoce desde o primeiro trimestre de gestação e a maior utilização da ecocardiografia fetal, geralmente indicada apenas para gestantes de alto risco. O objetivo é a detecção das cardiopatias congênitas graves para que se faça um planejamento do parto em centros especializados. Apesar da ecocardiografia fetal ser bastante acurada, a maioria dos recém-nascidos cardiopatas ainda nasce sem diagnóstico, uma vez que muitos casos de cardiopatias congênitas ocorrem em grupos de baixo risco e não são detectados pelo rastreamento no momento do ultrassom pré-natal.
Como é a realidade em outros países?
Há mais de 25 anos, países como França, Inglaterra e Espanha recomendam que o coração fetal seja examinado no momento da ultrassonografia obstétrica de rotina. É fato, no entanto, que mesmo após tantos anos de investimento em programas educacionais de treinamento, ainda é grande a variação regional nas taxas de detecção pré-natal das cardiopatias mesmo nestes países. Um estudo europeu mostrou taxa de detecção de cardiopatias fetais bastante baixa (25%), sendo a França o país com melhor desempenho (48%), seguida pela Espanha (45%), Alemanha (40%) e Inglaterra (35%). Mas a ecocardiografia fetal ainda é nossa melhor arma contra as cardiopatias congênitas e pediátricas.
É possível prevenir uma cardiopatia congênita?
Como não é considerada uma doença evitável, não é possível a prevenção. Mas o diagnóstico pré-sintomático dos defeitos cardíacos que ameaçam a sobrevivência do recém-nascido é primordial para que haja um atendimento correto no tempo necessário, configurando o tratamento precoce e garantindo o direito a uma vida saudável para esses cidadãos do futuro.