Por Bianca Provedel – Ceo do Instituto Ronald McDonald
Em março de 2025, completamos cinco anos do início de uma das maiores crises globais que vivenciamos nas últimas décadas: a pandemia da Covid-19. Não apenas as estruturas de saúde, mas toda a sociedade foi abalada de uma forma que não poderíamos prever. Como CEO do Instituto Ronald McDonald, uma instituição que apoia saúde e bem-estar de crianças, adolescentes, prioritariamente com câncer, e suas famílias, a pandemia deixou marcas profundas e transformadoras. Ao olhar para esses cinco anos, vejo uma trajetória que não foi apenas marcada pela dor, pela perda e pela luta, mas também por momentos de resiliência, solidariedade e renovação.
Quando a pandemia chegou, nossos corações estavam recheados de preocupações. Nossa primeira reação foi pensar nas crianças e adolescentes com câncer e suas famílias, que já enfrentavam desafios imensos, e como poderiam lidar com o medo de uma doença invisível, contagiosa e desconhecida. Para muitas dessas crianças, a fragilidade já era parte do seu dia a dia. Seus sistemas imunológicos estavam debilitados e o tratamento para o câncer tornava suas vidas ainda mais vulneráveis. O que aconteceu depois foi um grande teste para o sistema de saúde, para nossas relações e, principalmente, para nossa humanidade.
O medo que transformou tudo – Os hospitais, que já eram locais de ansiedade e medo, se tornaram pontos de isolamento total. As Casas Ronald McDonald, que sempre foram um ponto de acolhimento, de proximidade e de cuidado com as famílias, passaram a ser um espaço de distanciamento. O vírus nos impôs um novo tipo de separação. O medo das infecções fez com que as famílias, em grande parte, ficassem restritas em seus quartos dentro das Casas, não podendo compartilhar e conviverem juntas, prática tão comum no dia a dia das Casas Ronald, enquanto a luta contra o câncer continuava. A dificuldade de manter o tratamento das crianças no meio da pandemia foi um dos maiores desafios que enfrentamos. Muitas mães e pais tiveram que decidir entre continuar o tratamento ou se expor ao risco da Covid-19, e, a cada dia, nossos profissionais estavam lá, ao lado deles, oferecendo suporte e alternativas. Nossos Espaços da Família que sempre foram espaços de convívios dentro dos hospitais para as famílias, com acolhimento e empatia, foram fechados e se reposicionaram como áreas de descanso para os profissionais de saúde que muitas vezes não podiam retornar às residências e não tinham locais para descanso nos hospitais. Trabalhamos em um edital emergencial de recursos para apoiar às instituições, hospitais e famílias em tudo que necessitassem, mesmo que não fosse diretamente no tratamento da doença. Afinal, acima de tudo, nossa missão é com a vida, e, neste momento, exigiu de nós muita flexibilidade, aprendizado e respostas rápidas diante do contexto vivido.
Sentimos, mais do que nunca, o peso das desigualdades. Sabíamos que, em um país de dimensão tão grande como o Brasil, não seria fácil garantir acesso à saúde de qualidade, principalmente em tempos de crise. Mas, ao mesmo tempo, foi nesse cenário de adversidade que presenciamos uma união de forças como nunca. Voluntários, parceiros, empresas e cidadãos comuns se uniram em prol de um bem comum, e isso foi uma verdadeira lição de empatia e solidariedade.
A pandemia nos forçou a repensar nossas prioridades. Para muitos, a vida tornou-se mais frágil, mais vulnerável, mais preciosa. Aprendemos, de forma dolorosa, que a vida pode mudar em um piscar de olhos. As relações, as rotinas, os projetos — tudo foi posto à prova. Para aqueles que já enfrentavam dificuldades, como as crianças com câncer e suas famílias, essa realidade se intensificou. Porém, também tivemos a oportunidade de vivenciar um renascimento coletivo, onde o apoio à saúde mental e emocional tornou-se tão importante quanto os cuidados físicos. Vivenciamento uma ressignificação do encontro e do toque que se tornou tão precioso. Em muitos momentos tudo o que desejávamos era reencontrar nossos entes e amigos e dar um abraço, um toque humano para acalentar a alma e o coração.
O comportamento das pessoas mudou. Nos tempos mais sombrios da pandemia, observamos um aumento da empatia, da vontade de ajudar ao próximo. As pequenas ações de pessoas, as grandes ações de empresas, os simples gestos de carinho, o mundo se uniu em torno de um único propósito: a solidariedade. De repente, estava claro para todos que, no fundo, estamos todos conectados, que somos um mundo só, que a dor do outro poderia ser a nossa também e que uma ameaça dessas é de todos nós. O medo trouxe consigo um movimento de reclusão, mas também de união, de ressignificação.
Para as crianças em tratamento contra o câncer, a pandemia foi um período de extrema dificuldade e medo. Muitas delas já lutavam contra um inimigo invisível dentro de seus corpos, e, agora, enfrentavam um mundo de incertezas lá fora. O isolamento social foi um fator angustiante, especialmente para aqueles que dependiam da convivência com seus familiares e amigos para enfrentar os dias difíceis do tratamento. As interrupções no tratamento, o medo do câncer evoluir rápido demais, o pavor de um novo vírus ainda desconhecido, o distanciamento físico e o sonho entorno de uma vacina que nos tirasse deste momento de desespero. Tudo isso gerou uma combinação explosiva de emoções e desafios para as famílias fragilizadas e para os médicos que nesta altura trabalham com novas condutas e protocolos a cada dia. Em nosso
Nosso papel, enquanto Instituto, foi redobrado. Tivemos que agir rapidamente. Globalmente foi montado um comitê de infectologia que discutia a cada semana procedimentos, condutas, novas descobertas e como nos adaptaríamos a elas. Tínhamos médicos e serviços do mundo inteiro conversando sobre alternativas para mantermos nossas famílias seguras e que função nossos programas poderiam ter neste momento para atender mais e melhor às famílias e comunidades. Estabelecemos novas formas de comunicação, para que as famílias pudessem se sentir mais próximas e mais cuidadas. Mantivemos por meses famílias isoladas nas 7 Casas Ronald McDonald em todo Brasil. Reposicionamento as 8 unidades de Espaço da Família que estavam nos hospitais para atendermos aos profissionais da saúde, destinamos milhões de reais a compra de EPIs para distribuir para os diversos estados do Brasil. Perdemos todos os nossos voluntários que compõem um exército de dezenas de milhares de pessoas da noite para o dia e nossas equipes buscaram se desdobrar para seguirmos o atendimento. Nossas fontes de recursos reduziram em 43% naquele ano, mas não abandonamos nenhuma instituição ou projeto parceiro. Buscamos reduzir o estresse de nossas famílias e staff através de terapias e atendimentos online e, acima de tudo, buscamos manter o lema de aproximar as famílias na distância e oferecermos todo o amor que sempre foi nossa marca registrada.
Reflexões de aprendizado e esperança – Hoje, cinco anos depois, o que eu sinto é uma profunda gratidão pelos aprendizados que a pandemia nos deixou. Aprendemos que a vida é frágil, mas também é forte. Aprendemos que o amor, a empatia e a solidariedade podem, sim, mover montanhas. E, sobretudo, aprendemos a importância do cuidado integral e do olhar para o cuidado centrado na família. Aprendemos que a tecnologia pode ser um grande aliado para ciência e para o suporte e acompanhamento das famílias, e isso, hoje, permite que sigamos com elas onde quer que estejam. Conseguimos conectar nosso corpo técnico e científico em minutos e ganhamos muita agilidade na tomada de decisão. Entendemos a força de um sistema global com a Ronald McDonald House Charities e descobrimos que a fronteira de 62 países, nos 5 continentes onde este sistema está presente, é simplesmente uma fronteira geográfica, pois estamos hoje unidos, nos ajudando e trocando expertises e boas práticas como se fôssemos todos parte da mesma comunidade. E na verdade somos. A comunidade RMHC, seja no Brasil, Ásia, Europa ou África é a comunidade que tem como missão: cuidar das famílias com crianças em condições médicas.
Olhando para trás, vejo um Brasil que, em muitos aspectos, sofreu intensamente. Mas também vejo um Brasil que soube se reinventar, que soube encontrar forças para seguir adiante. O futuro, com tudo o que já aprendemos, deve ser mais humano, mais colaborativo, mais resiliente. As crianças e famílias que atendemos todos os dias merecem um futuro mais justo e mais solidário, e é isso que nos motiva a continuar nosso trabalho. Para nós, a pandemia não foi só um período de dificuldades, foi uma lição de que, mesmo nas piores tempestades, podemos renascer melhores depois delas.
E, como sempre, seguimos confiantes de que, enquanto houver vida, seguiremos firmes e presentes para que no coração de cada criança que atendemos, sempre haja esperança, e que o olhar de cada família tenha a confiança de que não estão sozinhas.