Coronavírus mudou a maneira das equipes de saúde trabalharem
Por Lília Nigro Maia, cardiologista, diretora de Qualidade Assistencial da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo – Socesp, professora adjunta de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Rio Preto e diretora médica do Centro Integrado de Pesquisa (CIP).
A cardiologista Lília Nigro Maia: “estamos acompanhando um verdadeiro trabalho cooperativo”
A pandemia do novo coronavírus está mostrando a importância da abordagem multidisciplinar no tratamento dos pacientes. O ineditismo da doença tem exigido que tanto os médicos como demais profissionais da saúde trabalhem em conjunto, de igual para igual, de maneira colaborativa e aprendendo uns com os outros.
A explicação é simples: o inusitado da COVID-19 é justamente a falta de um diagnóstico único e preciso. A amplitude de sintomas apresentados pelos infectados, bem como a necessidade de prescrições individuais, caso a caso, e a evolução particular de cada quadro, envolvem, além de pneumologistas, imunologistas, hematologistas, cardiologistas, gastros e intensivistas, entre outros especialistas médicos, também enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, todos empenhados na manutenção da vida do paciente.
O interessante e gratificante, mesmo diante desta situação adversa, é que estamos acompanhando um verdadeiro trabalho cooperativo. As visitas aos doentes internados nas unidades de terapia intensiva – algo, infelizmente, muito comum nos acometidos pela COVID-19 -, são uma prova desse novo protocolo: colaboradores de áreas diferentes passam visita em grupos multifuncionais a fim de obter um prognóstico mais abrangente de cada caso.
Sem dúvida, em uma equipe multidisciplinar, o médico acaba tendo um protagonismo porque está habilitado com o conhecimento técnico para agir, principalmente quando a vida corre risco. Mas o cenário da COVID-19 deixa claro que, principalmente dentro de um ambiente de UTI, os demais profissionais são vitais na rotina dos internos. A enfermagem, por exemplo, é a alma dos hospitais: enfermeiros e auxiliares estão no dia a dia, acompanhando as evoluções e involuções de cada um. Já os psicólogos precisam tratar da ansiedade, do medo e da insegurança de quem está em condição vulnerável e longe da família e, às vezes, também dos familiares, assim como os assistentes sociais, aptos a darem suporte e informações aos parentes impedidos de ficarem próximos pelo risco de infecção. Fisioterapeutas respiratórios, por sua vez, são estratégicos nos procedimentos, como o desmame do respirador e assim por diante.
Mudança de hábito – O fato é que o trabalho multidisciplinar propriamente dito ainda é uma novidade no Brasil, diferente do que acontece em outros países. A ideia de cada um fazer a sua parte, mas com maior integração entre as áreas é mais evidente em especialidades como a Oncologia, uma vez que o tumor poderá estar em um ou mais órgãos e o tratamento ou cirurgia exigirá também o acompanhamento do médico da especialidade correspondente.
Na Cardiologia não é diferente. Nós, os cardiologistas, somos dependentes da interdisciplinaridade para o bom andamento dos tratamentos: orientamos o paciente a parar de fumar, o que exige acompanhamento psicológico; a mudar a dieta, o que requer a orientação do nutricionista; propomos a prática da atividade física, que dependerá de um educador físico; o acompanhamento do dentista, uma vez que muitas doenças cardíacas têm relação com a saúde bucal.
Não para menos, a visão integralista da Medicina está no DNA da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo – SOCESP há cerca de 30 anos. Na entidade, a integração dos cardiologistas, demais especialistas médicos e outros profissionais de saúde já é uma prática desde a década de 1990. A entidade mantém departamentos de Psicologia, Enfermagem, Fisioterapia, Serviço Social, Odontologia, Farmacologia, Nutrição e Educação Física, que participam e contribuem com as discussões promovidas pela entidade, tanto em congressos oficiais como no dia a dia da sociedade, além de um grupo de estudos sobre cuidados paliativos.
No último Congresso Virtual de Cardiologia da SOCESP, ocorrido entre os dias 29 de junho e 2 de julho, não foi diferente. A programação contou com temas como Uma doença do corpo e da alma; a atenção psicológica no enfrentamento da pandemia da COVID-19; Desafios e resultados da implementação de hospitais de campanha sob a ótica da Enfermagem; Entendendo os desafios do suporte ventilatório na COVID-19: evidências relevantes; O farmacêutico clínico na assistência aos pacientes cardiológicos com coronavírus; COVID-19 e metabolismo lipídico e Os desafios dos profissionais de Serviço Social em tempos de pandemia, entre outros.
Hierarquização – A inovação da multidisciplinaridade ainda bate de frente com certa hierarquização da Medicina. Mesmo quando o médico compreende a necessidade de outro médico ou da atuação de profissional técnico para a boa conduta é ele quem fará a indicação e encaminhará ao fisioterapeuta, à nutricionista, ao psicólogo etc. E ainda existem aqueles que acreditam que podem centralizar: indicar a melhor dieta ou exercícios físicos e dar suporte psicológico.
Mas nenhuma formação profissional em saúde é completa. Cada um tem seu ponto forte e seu conhecimento. E olhem o tamanho do prejuízo para o paciente: sem uma prescrição para sessões de fisioterapia, por exemplo, não poderá acessar o serviço via convênio.
A integração é o caminho funcional e benéfico para todos os envolvidos no processo. O paciente não é um fígado, um rim ou um coração. Ele é um organismo que precisa ser analisado em sua pluralidade, levando em conta o histórico de vida, as queixas e os sentimentos envolvidos. A COVID-19 veio ensinar novas lições e prescrever novas práticas médicas, como a necessidade de intercooperação na área da saúde. Resta fazer uso desta receita.