Dia do Orgulho Autista: Mitos sobre o Transtorno e o que dizem os especialistas em relação ao tratamento
A psicóloga Júlia Sargi: “o Dia do Orgulho Autista vem como uma oportunidade para conscientizar a sociedade sobre o espectro e avançar na luta contra os preconceitos”
De acordo com a psicóloga Júlia Sargi, grande parte dos materiais divulgados sobre o autismo na mídia brasileira vem carregado de conceitos generalistas que não fazem parte da realidade de indivíduos com TEA (Transtorno o Espectro Autista). Ela é Analista do Comportamento – Supervisora ABA (Análise do Comportamento Aplicada) do Grupo Conduzir e, conforme ressalta, “inúmeros mitos que são transmitidos pela sociedade e “achismos” em torno do comportamento de pessoas com autismo só reforçam estereótipos e preconceitos que dificultam ainda mais o processo de inclusão”.
Segundo estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS). A doença atinge cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo 2 milhões somente no Brasil. Conforme estimativa do Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos EUA – CDC, uma em cada 59 crianças apresenta traços de autismo. Como um número expressivo como esse poderia enquadrar tantos autistas dentro de características iguais de comportamentos, sem diferenciação, questiona a psicóloga.
“Quando falamos de autismo, falamos de um transtorno do neurodesenvolvimento que faz parte de um espectro, ou seja, que vão existir inúmeros indivíduos com características diferentes entre si, que necessitam de muito ou pouco suporte. Indivíduos que são seres únicos e que devem ser tratados como tal, assim como qualquer ser humano”, pontua, ao informar que no Dia do Orgulho Autista, especialistas da área, ativistas e mães de pessoas com TEA ganham voz para falar sobre o espectro e desmistificar situações que reforçam ainda mais o preconceito.
A data, comemorada em 18 de junho, é marcada para relembrar e celebrar as características únicas e a neurodiversidade de pessoas com o transtorno. “O que a causa autista necessita é de empatia e acolhimento, através da disseminação de informações verdadeiras, contribuindo para fazer a diferença na inclusão social das pessoas autistas”, enfatiza.
Mitos e verdades – Quantas pessoas já não ouviram falar que autismo é causado pela falta de afeto, provocado por vacina, algum tipo de alimento, que é uma doença? Enfim, informações errôneas, sem embasamento científico, que são disseminadas e contribuem ainda mais com conceitos não verdadeiros em relação ao TEA.
Principalmente na ocasião do Dia do Orgulho Autista, “o nosso papel como especialista nesta data é desmistificar e mudar a visão negativa em relação ao transtorno, esclarecendo à sociedade que o TEA não é uma doença, mas, sim, uma condição de ‘diferença’, em que pessoas que estão dentro do espectro possuem algumas características próprias que lhe trazem desafios. Com isso, o objetivo sempre será de incluir e integrar essas pessoas à sociedade, considerando e respeitando suas diferenças e necessidades. Além disso, essa data é muito importante também para apoiar as famílias das pessoas com TEA, já que estão em constante luta pelo reconhecimento e cumprimento dos direitos que vêm sendo arduamente adquiridos, ampliando o conhecimento acerca do assunto entre as famílias, profissionais e a comunidade”.
Ao se falar sobre autismo, destaca ainda, “surgem também algumas afirmações comuns e errôneas de que os autistas são muito inteligentes, superdotados, bons com números, aprendem diversas línguas, entre outros mitos”. Neste sentido, é importante enfatizar que “o transtorno do espectro autista evidencia algumas características comuns, mas cada indivíduo é único e apresenta suas próprias habilidades e dificuldades: alguns têm, sim, uma habilidade incrível para algo em específico, e, muitas vezes, isso pode se dar devido ao hiperfoco, ou seja, o interesse restrito por determinado assunto. Mas uma grande porcentagem das pessoas que se encontram no espectro apresenta déficits cognitivos significativos, que dificultam a aquisição de novos repertórios”, observa.
Uma outra expressão, considerada mito, e que é muito comum de ouvir, é de que o autista “vive no seu próprio mundo” e que não gosta de estar com outras pessoas. A verdade é que a dificuldade na interação social é uma característica significativa muito comum aos indivíduos com autismo, mas isso não significa que eles não queiram se relacionar com outras pessoas, e, sim, que apresentam dificuldades em iniciar ou manter a interação, entender algumas regras sociais, entre outras habilidades que são extremamente importantes nas relações. E mais uma vez, “precisamos olhar individualmente para cada um e entender qual a dificuldade e qual a motivação para se relacionar com os outros, lembrando que isso representa uma parte do todo quando tratamos do espectro”, salienta, comentando a história de Josiane Mariano, com 36 anos, mãe do Heitor, de 10 anos, diagnosticado com autismo aos 2 anos. Ela conta que já ouviu diversos absurdos ligados às causas do autismo e opiniões de pessoas em relação ao comportamento do filho: “Já ouvimos de tudo, desde que era falta de estímulo e que se nós, pais, conversássemos mais com ele, nosso filho se desenvolveria. Ouvimos isto até mesmo de médicos. De religiosos dizendo que ele ‘veio assim’ para pagar pelos pecados de outras vidas, assim como os demais deficientes desse mundo, e, ainda, frases do tipo – eles são gênios, o que não é nem de longe verdade. No nosso caso, conto até que meu filho aprendeu a ler muito cedo, com apenas três anos de idade, sozinho, sem nenhum estímulo, inclusive em inglês, mas, ao mesmo tempo, aos seis anos, ainda usava fraldas. A conta não fecha, entende? Cada família, cada filho é de um jeito”
No Transtorno do Espectro Autista todos os indivíduos têm potencial para aprender e desenvolver novos repertórios, e, para isso, basta saber a forma correta de ensiná-los. Ao serem observadas as variações/características dessas pessoas, algumas podem até ser interpretadas como vantagens competitivas e potencialidades. Há alguns indivíduos com TEA que possuem uma condição diferente (e rara) conhecida como ‘savantismo’ ou Síndrome de Savant, que é uma ‘grande capacidade intelectual’, entendida como genialidade.
“Os ‘savants’, apesar de apresentarem uma inteligência acima da média e talentos notáveis em alguns aspectos, como, por exemplo, realizar cálculos extremamente complexos ou registrar/memorizar centenas de livros, podem também apresentar dificuldades e limitações nos repertórios sociais ou de independência. Portanto, explica a psicóloga, diante de tantas diferenças, vale ressaltar que a inteligência acima da média não é uma regra.
A mãe Josiane Mariano relembra que o dia a dia com o filho é vivenciado de “pequenos orgulhos”, e isso torna a caminhada cheia de superações e vitórias.
“Todos os dias quando avançamos um passinho rumo a uma qualidade de vida melhor, quando ele aceita experimentar algo novo, quando se sente à vontade em locais que antes talvez despertasse uma agitação maior, quando responde a uma interação social de forma adequada, por exemplo, temos um grande sentimento de vitória. Meu filho, assim como qualquer filho para uma mãe, me enche de orgulho. E eu só conheço ele dentro do espectro autista, não existe um Heitor dissociado disso, ele é assim e está tudo bem”, relata emocionada.
Capacitismo, ativismo e autismo – O termo “capacitismo” tem sido disseminado e utilizado nos meios de comunicação, assim como nas redes sociais, para falar sobre a discriminação e preconceito social em relação às pessoas com deficiência. Em sociedades capacitistas, a ausência de qualquer deficiência é visto como “o normal”, e pessoas com alguma deficiência são entendidas como exceções; a deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica.
Polyana Sá tem 20 anos, é estudante de engenharia de bioprocessos e biotecnologia na UFPR (Universidade Federal do Paraná), ela é autista e foi diagnosticada aos 16 anos. Polyana faz acompanhamento psicológico desde os 12 anos, antes mesmo do diagnóstico. Ela conta que é ativista da causa autista e utiliza as redes sociais para desmistificar informações errôneas sobre o TEA e disseminar informações para a sociedade, o que tem ajudado muitas pessoas que são diagnosticadas a lidarem com o transtorno.
“As pessoas tendem a fazer generalização sobre o que é autismo, a partir dos estereótipos, no caso: autista homem, branco, que ou exige uma grande necessidade de apoio substancial ou se enquadra no quesito de altas habilidades. E toda vez que você tem uma pessoa que sai dessa linha e não segue a conformação dessa ‘caixinha’ que nos é criada, então, a sociedade dá uma travada, para e pensa: mas essa pessoa é autista mesmo? Nesse questionamento, em vez das pessoas procurarem se informar mais a respeito do TEA e saber que existem vários indivíduos autistas, de todas as formas, jeitos e maneiras que você possa imaginar, as pessoas continuam propagando mitos e absurdos que ouviram para as outras pessoas. É justamente assim que o capacitismo se constrói, aumenta e ganha dimensões que são fora do normal”.
Palestrante, ao falar sobre a interseccionalidade de raças, Polyana gosta de dizer que “as pessoas pretas com deficiência e que buscam ter voz na sociedade são pessoas que não se submetem ao sistema. Porque todos os dias existe uma estrutura social que faz com que pessoas como nós não queiram existir ou sintam vergonha disso. Então, quando você tem uma pessoa que é mulher, preta, com deficiência, empoderada e que fala sobre o assunto, é uma vitória. E dizer às pessoas que mulheres, autistas, pretas existem, e que somos várias, mas que muitas vezes não somos notadas, é muito importante. Nós, autistas, temos muitas caras, jeitos, formas e você vai encontrar autistas de muitas maneiras e que continuam sendo assim. Então, é muito complicado lidar com a questão do capacitismo, tanto em pessoas que se encontram com grande necessidade de apoio substancial, tanto em pessoas com pouca necessidade de apoio substancial, como é o meu caso. Mas, todos estamos ali, no mesmo espectro”.
Autismo tem cura? – Muito tem se disseminado sobre a “cura do autismo”, reforçando o mito de que se trata de uma doença. Sem contar que é possível encontrar profissionais vendendo “fórmulas mágicas” e soluções para cessar ou diminuir o transtorno. Mas já se sabe que isso não existe. São falsas informações que devem ser desmentidas e rebatidas por toda a sociedade, meios de comunicação e especialistas da área. O que se tem são intervenções que ajudam a desenvolver e/ou aprimorar repertórios importantes que vão auxiliar os indivíduos no espectro a terem melhores condições para interações sociais e habilidades para atingir o máximo de independência possível e qualidade de vida.
Neste sentido, explica Júlia Sargi,a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) é uma intervenção que maximiza o potencial do indivíduo, através da ampliação de habilidades e redução de possíveis barreiras comportamentais que podem dificultar o aprendizado, tendo em vista que, a partir da avaliação, é possível mapear e respeitar a singularidade de cada um.
Orgulho Autista – Para a palestrante e ativista Polyana Sá, o Dia do Orgulho Autista é um dos dias mais importantes do ano. “É o dia em que temos para bater no peito e dizer – eu sou autista e … sociedade, vocês precisam entender e conviver com isso porque eu não vou mudar, eu não preciso mudar, eu não preciso ser diferente. E eu acho muito bonito essa expressão de autoamor, de reconhecer os semelhantes e dar apoio para as outras pessoas que estão em processo de diagnóstico, para os familiares que têm toda a trajetória com os filhos. Uma data muito importante e especial que precisa de visibilidade e muito engajamento. Dentro do movimento, falo por mim, é dia de festa e celebrar que se você é autista, não existe nada de errado com isso.”