Erradicando o Pé Torto no Brasil: o programa visa formar uma rede de clínicas de referência para o tratamento do pé torto congênito na rede pública

Ortopedista Infantil Monica Paschoal Nogueira: “se o pé não for tratado, a deformidade pode resultar em limitações psicológicas, sociais e físicas; se ele for tratado adequadamente, a criança terá uma vida livre da deformidade e pés com aspecto estético e funcional muito próximos ao normal. ”

O pé torto congênito é a alteração ortopédica mais comum. Sua incidência é de um para cada 1000 nascimentos. Estudos relatam que no Brasil nascem 4000 crianças ao ano com essa deformidade. O pé cresce virado para dentro e para baixo. A causa está relacionada a alterações musculares e retrações da parte interna e posterior da perna e do pé, cuja alteração ortopédica pode ser detectada a partir do terceiro mês de vida intrauterina através da ultrassonografia.

De acordo com a ortopedista infantil Monica Paschoal Nogueira, coordenadora do Programa Erradicando o Pé Torto no Brasil, “ainda não podemos evitar a ocorrência do pé torto, mas se o ele não for tratado, a deformidade pode resultar em limitações psicológicas, sociais e físicas, com preconceito e marginalização dessas crianças, adolescentes e adultos”. Ela é membro da PONSETI BRASIL – braço brasileiro da Ponseti International Association  que objetiva a difusão e aplicação correta do Método Postei para o tratamento de crianças nascidas com pé torto congênito.

Método Ponseti, o que é? – Segundo a Dra. Monica Nogueira, “o tratamento deve ser feito nos primeiros meses de vida através do Método Ponseti, que consiste na confecção de gessos longos, do pé até a coxa, bem moldados, e trocados a cada semana (por cerca de quatro a sete semanas). A seguir, é feita uma pequena cirurgia, com a secção completa do tendão de Aquiles, que pode ser feita com anestesia local. Para evitar as recidivas, a criança deve usar uma órtese (botinhas conectadas a uma barra) para manter os pés com a mesma rotação dos últimos gessos“.

Ela explica que o tratamento não foi sempre assim. “Há 20 anos, incluía um demorado período de gessos, geralmente não tão eficaz, e, então, era necessária uma extensa e complexa cirurgia, feita apenas em centros terciários, com alto custo, e que resultava em rigidez e alterações degenerativas a partir da terceira década de vida. Os pés operados apresentavam piores resultados a longo prazo, com artrose e múltiplas outras cirurgias por pé”.

Já com o Método Ponseti, os resultados são muito superiores, no sentido de ter pés mais funcionais, com mais flexibilidade e força, e, esteticamente, muito próximos ao normal. Além disso, ele pode ser considerado importante ferramenta em saúde pública por simplificar a atenção e proporcionar tratamento eficaz e eficiente do pé torto, essa alteração ortopédica tão incapacitante”,

Difusão – A introdução do Método Ponseti no Brasil, assim como em tantos outros centros do mundo, teve uma resistência inicial, mas, depois, virou o padrão ouro (desde 2004 pela SBOT – Sociedade Brasileira de Ortopedia no Brasil). A Dra. Monica Nogueira lembra que “os primeiros simpósios internacionais foram feitos em Botucatu/SP, em 2003 e 2005. A UNESP foi a primeira universidade brasileira a ter um ambulatório dedicado exclusivamente ao tratamento do Pé torto e promoveu uma apresentação onde ortopedistas de 14 serviços em quatro estados brasileiros demonstraram 94% de sucesso na aplicação do Método Postei, conforme diversos outros serviços do mundo reportavam na literatura”.

Pela alta reprodutibilidade do Método, logo surgiu a ideia de ensinar outros colegas brasileiros a fazerem o procedimento. “Assim, junto a outros 12 colegas que tinham tido mais vivencia no Método, fizemos uma primeira iniciativa educacional para ortopedistas brasileiros, o Programa Ponseti Brasil em 2007 -2008”, relata a especialista, contando ainda que o Programa, com suporte da instituição inglesa LA VIDA www.lavida.org.uk, expos 554 profissionais ortopedistas ao treinamento do Método em 21 estados brasileiros. O formato foi um simpósio, com aulas teóricas, workshop em modelos de borracha, e confecção de gessos e atendimento de pacientes trazidos pelos colegas de cada local.

“Infelizmente, esses simpósios iniciais sozinhos foram ineficazes para treinar de forma efetiva os profissionais, não teve o reconhecimento dos gestores dos profissionais treinados, e teve pouca repercussão para o tratamento de crianças no SUS. Além disso, o treinamento incluiu muitos colegas que, na realidade, nem atendiam crianças com pé torto. Isso ocorreu porque o recrutamento desses médicos era por livre adesão. Assim, nem todos os profissionais eram comprometidos com o tratamento do pé torto. No entanto, esse programa foi muito importante para a difusão do Método”, acrescenta a médica.

De acordo com a Dra. Monica, o tratamento pelo Método Ponseti é bastante reprodutível, mas requer atenção aos detalhes. “Após alguns anos de trabalho, constatamos que muitos médicos estavam modificando o Método com diversas adaptações, e, assim, a eficácia de correção diminuiu muito e as complicações inerentes a fazer gessos sem adequado treinamento aumentaram. Em países em desenvolvimento, vimos também diversas ONGs lançando programas de tratamento como “ajuda humanitária” na Ásia, na África e na América Latina, sem integrar o procedimento nas redes de tratamento do sistema de saúde de cada país. Com isso, resolvemos, criar um novo programa, baseado no exemplo de uma iniciativa anterior – um programa de treinamento médico apoiado no modelo de Mentora, envolvendo três países que não tinham programas regulares de tratamento do Pé Torto – a Nigéria, o Paquistão e o Peru, subsidiado pelo US AIDS em 2010: o Programa Erradicando o Pé Torto no Brasil”, informa.

O Programa – O Programa Erradicando o Pé Torto no Brasil surgiu, assim, a partir de uma iniciativa dos ortopedistas brasileiros da Ponseti Brasil, junto ao Rotary Internacional, para a criação de uma rede nacional de clínicas de referência públicas para o tratamento do pé torto congênito.

A Dra. Monica Nogueira explica que o programa consistiu no treinamento de 50 ortopedistas que já atendiam crianças com pé torto e que trabalhavam em um serviço público. Ele ocorreu de 2016 a 2018.  Os “treinando”, de diversas regiões do Brasil, ficaram cinco dias em contato direto com seus professores e aprenderam o tratamento do pé torto de forma individualizada.

Ele é um modelo baseado em MENTORIA, que está mostrando melhores resultados porque há um vínculo aluno-professor que continua após a semana de treinamento. Os “treinando” refinaram e alinharam as condutas técnicas no curso online, com professores de todo o país, em plataforma zoom; depois aprenderam sobre como fazer um programa nacional e implantar uma clínica de referência pública para tratamento do pé torto. Aprenderam também, o que foi novo para esse programa, que a participação dos pais, organizados em grupos, é muito importante para o sucesso do tratamento.

Outro envolvimento comunitário foi o de clubes rotários próximos à clínica de referência para apoiar o funcionamento das clínicas, ajudando, por exemplo em casas de apoio para pacientes de regiões de difícil acesso, ou na criação e suporte de bancos de órteses para os pacientes. Mas o que foi realmente inovador nesse modelo de treinamento foi a vivência prática do Método: AS MEGACLÍNICAS. Nesse modelo, os “treinando” vivenciaram o atendimento de crianças em diversas fases do tratamento e discutiram, com seus mentores, todos os aspectos do atendimento, como a entrevista dos pacientes, avaliação, confecção de gessos e seguimento, identificação de recidivas, durante o período de órtese e a longo prazo.

As megaclínicas ocorreram nos hospitais que sediaram o evento, nas cinco cidades onde foram realizadas as cinco fases. Os médicos locais ajudaram, constituindo o “grupo de apoio”. Muitos desses médicos também se envolveram na implantação de clínicas de referência.

Megalíticas – Hospitais que sediaram o evento, em suas 5 edições:

• São Paulo/SP: Hospital do Servidor Público Estadual, Hospital das Clínicas FMUSP, Hospital Universitário – USP;

• Salvador/BA: Hospital Martagão Besteira, Hospital Obras Sociais de Irmã Dulce, Clínica Cardo Pulmonar;

• Passo Fundo/RS: Hospital São Vicente de Paulo, IOT – Instituto de Traumatologia e Ortopedia;

• Brasília/DF: Hospital Sarah Kubitschek, Hospital de Base;

• Belo Horizonte/MG: Hospital da Baleia, Hospital Ciências Médicas, Hospital Sarah Kubitschek.

Em 2022, informa a Dra. Monica, “iniciamos as avaliações das clínicas SUS de cada região: Nordeste (Recife, abril de 2022), Norte (Belém, agosto de 2022); Centro Oeste (março de 2023), Sul (Porto Alegre, maio de 2023) e Sudeste (Rio de Janeiro, agosto de 2023). Essa avaliação poderá resultar na validação da rede SUS de tratamento do Pé Torto pelo Ministério da Saúde, e assim erradicar a deformidade não tratada em nosso país. ”

Sair da versão mobile