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A pedofilia é um tema delicado que precisa ser esclarecido para os pais e educadores, uma vez que os abusadores, geralmente, estão sempre muito próximos da vítima, seja em casa, ou em espaços de convivência de ambos, como locais religiosos e de prática esportiva.
Nessa entrevista ao Portal Medicina e Saúde, a psicóloga e psicanalista Heloisa Mamede Silva Gonzaga, professora aposentada da UFMG, fala sobre o perfil do abusador, sinais e transtornos das vítimas, legislação prevista no Código Penal, entre outros aspectos. Confira:
Heloísa, o que é pedofilia? – A palavra pedofilia deriva de uma combinação de radicais de origem grega: paidos é criança ou infante, e philia, amizade ou amor, sendo definida então como atração sexual por crianças. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a pedofilia como transtorno dapreferência sexual e enquadra, como pedófilos, adultos que têm preferência sexual por crianças, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade.
De acordo com a CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, trata-se de uma patologia, que se refere a um transtorno mental em que a pessoa sente prazer sexual quando tem estímulos que envolvem crianças ou, necessariamente, precisa delas para se excitar. Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, para ser descrito como pedófilo o sujeito deve ter pelo menos 16 anos de idade e ser ao menos cinco anos mais velho que a criança.
Existem estudos que mostram que a faixa etária da maioria dos pedófilos está entre 30 e 45 anos.
Um pedófilo normalmente é também uma vítima sexual na infância? – A Psicologia entende que a pedofilia não é crime e, sim, um transtorno parafílico, ou seja, uma doença crônica.
De acordo com Hisgail (2007) para a Psicanálise, a pedofilia representa uma perversão sexual que envolve fantasias sexuais da primeira infância, abrigadas no complexo de Édipo, período de intensa ambivalência da criança com os pais, caracterizando-se pela atitude de desafiar a lei simbólica da interdição do incesto.
O pedófilo tem sua personalidade classificada na linha das perversões, sendo considerada uma anomalia da escolha do objeto, comportamento sexual considerado patológico, visto que se afasta da norma geral aceita pela sociedade no que diz respeito ao tipo de escolha objetal (JOLO, 2010).
Foi a partir de 1905 que Sigmund Freud adotou o termo perversão para a Psicanálise, propondo a ideia de que havia nos sujeitos perversos um desvio sexual em relação a uma norma. Freud (1996) em sua teoria afirma que a pedofilia é uma aberração incontestável no que se refere à sexualidade, pois o pedófilo se utiliza de pessoas sexualmente imaturas como objetos sexuais de forma que, quando uma pulsão urgente surge, não pode apropriar-se no momento de nenhum objeto mais adequado.
Os estudos descobriram que a maioria dos adultos infratores relatou não terem sofrido qualquer tipo de abuso durante a infância, mas os estudos variam quanto às estimativas percentuais de infratores com histórico de abusos em relação ao total.
Em que momento esse transtorno é desencadeado? Ele necessita de um gatilho? – O abusador tem como perfil a apresentação de transtornos da personalidade e de conduta, orgânicos ou psiquiátricos, sendo que destas disfunções sexuais do agressor pode se ver o desejo sexual hiperativo (voyeurismo, exibicionismo, estupro, pedofilia, masturbação compulsiva e prostituição), caracterizado pela frequência aumentada de fantasias e desejos sexuais, que o conduz de maneira compulsiva até a falta de controle e a prática do ato em si. O ato aparece como uma forma de diminuir a ansiedade e a solidão.
O pedófilo sabe do seu transtorno e se culpa por ele? Como ele lida com o fato de ser pedófilo? – A culpabilidade de um pedófilo é inconclusiva, pois em alguns, após terem cometido o abuso, se sentem culpados e procuram ajuda profissional. Outros – com traços de psicopatia, são indiferentes aos sentimentos da vítima, agindo de forma cruel e com indiferença. Não é propriamente um sujeito que sente a pedofilia como se fosse um transtorno, mas sente determinadas reações que o conduzem ao ato classificado como abusivo.
Como identificar um pedófilo? – Qualquer pessoa pode ser um pedófilo. Portanto, pode ser difícil identificar um, principalmente porque a maioria dos pedófilos inicialmente conquista a confiança das crianças que sofrem o abuso. Normalmente, eles não demonstram tanto interesse por adultos quanto pelas crianças. Eles costumam ter muitos empregos que permitem o contato com crianças de determinada faixa etária ou planejam outras formas para que possam passar algum tempo com elas praticando atividades de professores ou babás.
Os pedófilos tendem a falar sobre crianças como se estivessem falando sobre adultos. Dizem que amam todas elas e sentem-se como se ainda fossem crianças.
Não existe uma classe social específica, podendo ocorrer em qualquer ambiente. Setenta e seis por cento das crianças vítimas de abuso sexual conhecem seu agressor; na maior parte dos casos é uma pessoa da própria família.
A maioria dos pedófilos é homem. Por que? De acordo com as estatísticas, sim, os homens são a maioria. Mulheres pedófilas permanecem mais ocultas, prevalecendo o fato que procuram suas vítimas fora do contexto social que frequentam.
Segundo Freud,os meninos experimentam o Complexo de Édipo sob a forma de ansiedade de castração (medo de perder o pênis ). As meninas – sob a forma de inveja do pênis. A não resolução do complexo pode levar a sérias perturbações psíquicas como neuroses, pedofilia, homossexualidade e outras.
A atração sexual do pedófilo é maior para qual sexo? – As estatísticas mostram que crianças e adolescentes do sexo feminino são maioria entre as vítimas de violência sexual. Em números 74,2% para crianças e um número ainda maior dentre as adolescentes: 92,4%.
Qual a idade das vítimas? – De acordo com o CID-10, a preferência sexual é por crianças ou adolescentes até 12 anos de idade. Do ponto de vista médico, psicanalítico e de doutrinadores forenses, é considerado pedófilo o agressor maior de 16 anos, que sente atração por crianças usualmente menores de 14 anos, sendo que nem sempre este vem a cometer atos libidinosos.
O pedófilo tem como controlar seus impulsos/desejos sexuais? Há tratamento? – Os portadores do transtorno pedofílico constituem umapopulação heterogênea.Desde aqueles com nível bem leve, que não atuam e são mais fáceis de serem tratados, até o nível catastrófico – quando chega ao ato sexual, muitas vezes com fantasias sádicas, afirma o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade) da Faculdade de Medicina do ABC, referência no tratamento de parafilias no Brasil.
Baltieri já teve contato com homens – e algumas mulheres, mas em número inexpressivo – com todos os níveis de pedofilia, de diferentes classes sociais, estado civil e orientação sexual em seu ambulatório em Santo André (SP). Ele conta alguns detalhes do tratamento – que pode durar a vida inteira, já que não há cura para pedofilia –, mas não de casos específicos. Quem chega ao ambulatório só é diagnosticado como pedófilo depois de passar por entrevistas, testes e avaliações neuropsicológicas feitos por uma equipe multidisciplinar.
Diagnosticados, os pacientes são inseridos em terapia cognitivo-comportamental de grupo, com dois terapeutas e até 10 pessoas – proporção usada em tratamentos semelhantes em países como EUA, Canadá e Itália (com outros pedófilos falando sobre o assunto no mesmo ambiente, eles não se sentem isolados e há menor risco de relatos mentirosos aos médicos e psicólogos). Nas sessões, eles trocam informações e técnicas para evitar situações de risco, frear a urgência sexual e adequar os pensamentos.
Em casos extremos, o pedófilo pode ser castrado? – Oliveira Filho (2007) relata que a pena de castração química se originou nos estados norte-americanos, por volta de 1916. Com a aplicação de hormônios, o criminoso deixa de possuir desejo sexual, diminuindo sua libido e, consequentemente, sua reincidência. O Parecer da CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania), por exemplo, indica que nos Estados Unidos a reincidência de crimes sexuais caiu de 75% para 2% com o tratamento de hormônios. Existem benefícios, embora o tratamento traga algumas alterações fisiológicas. No Brasil já foi colocada como forma de lei pela câmara dos deputados, mas não existe aprovação.
Quais os principais sinais que as vítimas apresentam que pais e educadores devem ficar atentos? – Isolamento social, agressividade, medo sem causa justificada, choro frequente, recusa em ir para a escola, dores nos genitais, interesse por brincadeiras sexuais, comportamentos infantis já abandonados anteriormente, insônia, dores de cabeça, enjoos, entre outros.
Quais os transtornos que as vítimas levam para toda vida? – A transformação do corpo da criança em um objeto sexual, em uma idade de pouca compreensão, compromete todas as etapas posteriores de desenvolvimento emocional. O “pacto do silêncio” exigido inibe a reação, ocorrendo medo de punição e um complexo de culpa inconsciente. Além disso, o sedutor desperta na vítima sensações sexuais precoces, em uma cena de sedução. A participação da criança é passiva e fantasiosa. As vítimas de abuso sexual tendem a sexualizar suas relações em um círculo vicioso, o que na adolescência pode levar a um quadro de promiscuidade. A vítima pode desenvolver, ainda, transtorno de estresse pós-traumático que acomete em torno de 57% dos adolescentes. Algumas crianças não conseguindo lidar com o trauma desenvolvem um quadro de dissociação, negando a realidade. Além disso, no adulto pode desenvolver ansiedade, depressão e isolamento social.
O que a legislação diz a respeito? – Atualmente, a pedofilia é assemelhada no Direito Penal como prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, encontrando punição legal no Código Penal, não sendo explicitamente tipificada, mas estando associada aos crimes de Estupro e Vulnerável, o qual dispõe nos artigos 217-A e 218 do Código Penal de 1940.
Art. 217-A – Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos: pena – reclusão de 8 a 15 anos;
§ 3º – Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: pena – reclusão de 10 a 20 anos.
§4º – Se da conduta resulta morte: pena – reclusão de 12 a 30 anos.
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente:
Art. 218-A – Praticar, na presença de alguém menor de q4 anos, ou induzi-lo a presenciar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: pena – reclusão de 2 a 4 anos (Código Penal, 1940).
Como observado, o sujeito passivo neste crime incorre-se ao menor de 14 anos por prática de conjunção carnal ou qualquer ato de cunho sexual com este, sendo o sujeito ativo o maior de 18 anos que pratique esse ato.
Segundo o Código Penal, a prática de conjunção carnal, ato libidinoso ou a satisfação de lascívia, desejo sexual, com o menor de 14 anos, incorre em crime de estupro de vulnerável, não tipificando exatamente como pedófilos, mas sendo todos os praticantes desses crimes tratados amplamente com a mesma penalidade, sem distinção.
De acordo com o Superior Tribunal de Justiça – STJ-, “é muito pobre a legislação brasileira na criminalização de condutas reprováveis e passíveis de serem consideradas práticas pedófilas, existindo praticamente um tipo único, no Estatuto da Criança e do Adolescente”. (Schmoller, MFR;Brandão, CA; Samapio, SV. Pedofilia no direito penal brasileiro: empóriodireito.com.br).
Como denunciar os pedófilos? – A maioria dos abusos ocorre em casa. A escola tem um papel muito importante de denúncia, observando o comportamento estranho de uma criança. A própria criança pode fazer a denúncia. Além disso, é necessário procurar o Conselho Tutelar, delegacias especializadas, autoridades policiais ou ligar par o Disque 100.
Aqui, ressalto o cuidado que se deve ter nessa denúncia para não cometer declarações falsas sobre uma determinada pessoa que poderá ficar marcada para toda a vida.
Atualmente há movimentos sociais em favor da descriminalização da pedofilia. O que a senhora acha disso? – Casos de pedófilos que já cometeram o ato em relação às crianças devem ser submetidos a interpretação jurídica para tipificar o crime. A Psicologia entende que a pedofilia não é crime e, sim, um transtorno parafílico, ou seja, uma doença crônica. Movimentos de descriminalização impensados, sem um suporte fundamentado, são, a meu ver, bastante perigosos.
Quais devem ser os cuidados com as crianças? – Pais, responsáveis e educadores devem saber sempre onde suas crianças estão e o que fazem. Devem ensinar a não aceitarem convites, dinheiro, presentes, comida e favores de estranhos, especialmente em troca de carinho; devem sempre acompanhá-las nas consultas médicas, supervisionar as mídias sociais e a não enviarem fotos ou informações pessoais.
Se a criança já sofreu um abuso, é fundamental a assistência psicológica. A ajuda especializada individual torna-se fundamental. O código de silencio entre o agressor e a vítima torna-se um ponto de trabalho durante a análise feita sob transferência. O relato da criança, seja sob a forma de desenhos ou na fala ou no brincar, consegue reverter a situação e proporcionar a sua realização como sujeito da sua própria vida.