De acordo com o maior estudo sobre o assunto realizado até hoje, em 2019, mais de 1,2 milhão de pessoas morreram em todo o mundo por infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos- Imagem de Arek Socha por Pixabay
Por gerações, infecções no trato urinário, uma das doenças mais comuns no mundo, eram facilmente curadas com o uso de um simples ciclo de antibiótico. No entanto, há evidências crescentes de que essas infecções, que atingem milhões de pessoas por ano, principalmente mulheres, estão cada vez mais resistentes a esses medicamentos.
De acordo com recente pesquisa realizada pela médica Larissa Hermann Nunes, por meio da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, este cenário se repete na capital do Paraná. Pelo estudo, orientado pelo médico e professor da PUCPR, Felipe Tuon, que avaliou amostras de urina de pacientes ambulatoriais atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2011 e 2019, houve um crescimento da bactéria Escherichia coli, responsável pela maioria das infecções urinárias. O trabalho também identificou o aumento da presença de bactérias portadoras de uma enzima chamada beta-lactamases, de espectro estendido (ESBL), que torna a bactéria resistente a vários antibióticos.
Conforme explica a Dra. Larissa Hermann, “a pesquisa constatou que, ao mesmo tempo que houve aumento no uso de antibióticos ao longo dos anos, aumentou também a resistência da população ao medicamento, passando de 4,7% em 2012 para 19,26% em 2019. Isso reforça que o controle do consumo de antibióticos beneficiaria a comunidade de forma geral”.
A pesquisadora conta que ela própria já teve diversas infecções urinárias tratadas com sucesso, mas, há alguns anos, quando recebeu novamente o diagnóstico, seu médico prescreveu o mesmo medicamento, e, dessa vez, ele não funcionou. “A partir dessa experiência, a questão do uso correto de antibiótico ficou ainda mais clara, porque é o uso excessivo desses medicamentos em seres humanos e na pecuária que faz com que as bactérias desenvolvam defesas para sobreviver.
Hoje, até mesmo infecções urinárias representam um risco maior para a saúde”, reforça a médica que atua nos hospitais Universitário Cajuru e Marcelino Champagnat, em Curitiba.
Na contramão das superbactérias – O caminho para driblar as superbactérias passa pelo uso consciente de antibióticos e requer a atuação de diversos atores, que vão desde a população em geral até profissionais da saúde e indústria farmacêutica. “Dentro das estratégias para reduzir a resistência a esse medicamento, além do descarte correto e conscientização, está o Programa de Gerenciamento do Uso de Antimicrobianos dentro de hospitais”, revela Tiago Zequinão, farmacêutico do Hospital Universitário Cajuru, instituição com atuação 100% SUS que integra o programa.
Até 2019, apenas 47,5% dos hospitais possuíam esse programa no país, e pouco mais de 30% continham estratégias documentadas para prescrição racional de antibióticos. O dado é do último levantamento realizado pela Anvisa, que avaliou 954 hospitais com Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Um grupo para realizar gestão de antibióticos é importante e essencial, pois otimiza a prescrição desse medicamento nos serviços de saúde, garante o efeito farmacoterapêutico e diminui a ocorrência de eventos adversos nos pacientes, além de reduzir a resistência das bactérias e desperdício de recursos. É um cuidado personalizado, que traz resultados positivos ao paciente, hospital e comunidade”, explica o farmacêutico.
Nesse sentido, prescrever um tratamento, especialmente para infecções, requer uma boa investigação diagnóstica para chegar à possível causa da doença. “Os cuidados com a saúde precisam ser diários e necessitam o envolvimento de todos: de cada pessoa, independentemente de estar bem ou doente, da sociedade e dos órgãos públicos e privados. Se não forem feitas mudanças no âmbito global, podemos chegar aos números de mortes por infecção de antes da criação da penicilina”, analisa a médica Larissa.
Resistência – Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a resistência a antibióticos pode levar à morte de 10 milhões de pessoas por ano a partir de 2050, o que representa uma morte a cada 3 segundos. A preocupação de médicos e cientistas é que, sem o investimento em pesquisas e um plano contra o abuso de medicamentos, podemos voltar à época em que os antibióticos não existiam.
De acordo com o maior estudo sobre o assunto realizado até hoje, em 2019, mais de 1,2 milhão de pessoas morreram em todo o mundo por infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos. A análise, publicada no periódico científico The Lancet, considerou dados de 204 países e territórios. Conforme o estudo, os óbitos têm sido causados por infecções comuns e tratáveis, como doenças respiratórias e da corrente sanguínea, decorrentes da resistência ao tratamento que as bactérias adquiriram.
No Brasil, a detecção de bactérias resistentes a antibióticos mais do que triplicou durante o período da pandemia de covid-19. É o que mostra um estudo realizado pelo Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O levantamento aponta que, em 2019, pouco mais de mil isolados de bactérias foram enviados ao laboratório para análise aprofundada. Em 2020, esse número passou para quase dois mil e, entre janeiro e outubro de 2021, já foram mais de 3,7 mil amostras.
O Brasil é o país com o maior consumo de antibióticos na América. É o que aponta o relatório da OMS sobre a vigilância de consumo do medicamento no mundo. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostram que cerca de 25% das infecções registradas são causadas por esses microrganismos. Nesse cenário, doenças como pneumonia, pielonefrite, tuberculose e gonorreia, estão se tornando cada vez mais difíceis e, às vezes, impossíveis de tratar.