Pâncreas 2025: cuidados paliativos, terapias de precisão e robótica marcam debate sobre a jornada do paciente

No primeiro simpósio global multidisciplinar dedicado ao câncer de pâncreas, realizado em São Paulo, especialistas do Brasil, Itália e Estados Unidos refletiram sobre a necessidade de integrar cuidados paliativos precoces, terapias personalizadas, cirurgia robótica e a força do advocacy para mudar a difícil realidade dessa doença, ainda diagnosticada majoritariamente em estágios avançados e com baixas taxas de sobrevida
Foto: Divulgação
O PANCREAS 2025: Pancreatic Cancer Research, Education & Assistance Symposium marcou um ponto de virada na história da oncologia pancreática. Reunindo especialistas de diversas áreas e países, o evento ofereceu, pela primeira vez, uma plataforma global dedicada exclusivamente a uma das neoplasias mais desafiadoras e letais. Entre os momentos centrais, o painel “Transformações na Jornada do Paciente com Câncer de Pâncreas” destacou como ciência, tecnologia, cuidado humano e mobilização social estão se articulando para redesenhar o percurso de quem recebe o diagnóstico.
Realizado em setembro, no Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo, a abertura do evento ficou a cargo da médica paliativista Fabiana Gomes de Campos, do A.C.Camargo Cancer Center, que sublinhou a necessidade de enxergar o paciente para além do tumor. “A Organização Mundial da Saúde descreve os cuidados paliativos como uma abordagem multi e interdisciplinar que melhora a qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameaça a vida. Nosso objetivo é prevenir e aliviar o sofrimento, com um olhar o mais amplo possível”, relata.
Em sua fala, a Dra. Fabiana destacou que a interdisciplinaridade deve guiar o cuidado desde o diagnóstico, permitindo integrar prescrição médica, apoio nutricional, fisioterapia, psicologia e espiritualidade. “O diagnóstico é quase sempre tardio, por ser uma doença silenciosa. Essa baixa taxa de cura, somada às poucas opções terapêuticas, nos inquieta. Mas a vida não para só porque o paciente está com dor, ´só porque hoje tem químio´. O trabalho está lá e o boleto está chegando. Tudo isso, que envolve o paciente, deve ser considerado”, acrescenta.
Ao comentar sobre as evidências científicas, a médica trouxe dados que confirmam a importância da atividade física. “Vimos na ASCO (congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica), que pacientes que receberam orientação ativa de exercícios tiveram ganhos de sobrevida superiores a 30%. Prova de que a atividade física contribui para a melhora da qualidade de vida e para a sobrevida”, observa.
Fabiana também enfatizou o papel da rede de apoio. Segundo ela, a doença pancreática atinge adultos relativamente jovens. Ninguém passa por uma situação desse tipo sozinho. O paciente precisa de muito apoio.
Na sequência, o oncologista clínico Tiago Cordeiro Felismino, também do A.C.Camargo Cancer Center, reforçou os enormes desafios do tratamento. “O câncer de pâncreas ainda é uma doença muito desafiadora. Os dados de sobrevida mostram que, tanto em séries norte-americanas quanto na nossa série do A.C.Camargo, apenas 13% a 14% dos pacientes estão vivos em cinco anos. A gente precisa fazer algo melhor”, avalia.
Mutações – Em sua fala, o Dr. Tiago Cordeiro explicou que 90% dos tumores apresentam mutações em KRAS, uma alteração difícil de ser inibida, mas que já começa a ser alvo de pesquisas com drogas específicas. “Duas moléculas, Sotorasibe e Adagrasibe, já mostram algum benefício nesse subgrupo raro de pacientes, com taxas de resposta próximas a 20%. O nosso sonho seria encontrar um inibidor pan-RAS, que atingisse todas as mutações”, vislumbra.
Ele também detalhou os avanços no entendimento de alterações genéticas como BRCA, que podem indicar maior sensibilidade a quimioterápicos derivados de platina ou ao uso de inibidores de PARP. “Pacientes com mutações germinativas de BRCA têm maior sensibilidade às platinas e podem se beneficiar de inibidores de PARP como tratamento de manutenção. Isso pode aumentar a sobrevida livre de progressão de forma significativa”, complementa.
Ao abordar a temática da imunoterapia, o especialista mostrou também o quanto a doença desafia as abordagens já consagradas. “Mesmo em pacientes com instabilidade de microssatélite, que em outros tumores chegam a ter taxas de resposta de 60% a 80% com imunoterapia, no câncer de pâncreas essa taxa cai para apenas 18%. Isso mostra como precisamos explorar outras estratégias, como terapias CAR-T ou vacinas terapêuticas”, explica.
Cirurgia robótica em câncer de pâncreas – Se por um lado a clínica enfrenta obstáculos biológicos quase intransponíveis, na cirurgia os horizontes parecem se ampliar com o uso de novas tecnologias. O cirurgião Ugo Boggi, professor da Universidade de Pisa, na Itália, apresentou um panorama das operações pancreáticas robóticas. “O estado da arte é definido tanto pela evidência científica quanto pela adoção clínica. O que vemos é que a cirurgia robótica está superando a laparoscopia, com uma curva de crescimento muito clara”, afirmou.
Ele apresentou dados do registro italiano de ressecções minimamente invasivas, que já reúne 3.700 casos. “Nos últimos três anos, dois terços das ressecções pancreáticas foram robóticas, e no caso da operação de Whipple esse número supera 75%. Isso não é apenas pesquisa, é vida real”, comenta.
Boggi também analisou ensaios clínicos internacionais que compararam técnicas abertas, laparoscópicas e robóticas. “Um estudo chinês, com mais de 200 casos, mostrou tempo de recuperação funcional seis dias menor no braço robótico. Outro ensaio randomizado, publicado em uma revista do grupo Lancet, evidenciou redução significativa no tempo de internação pós-operatória. Mesmo quando os resultados não foram estatisticamente significativos, a mortalidade foi menor no braço robótico”, relata.
Apesar de reconhecer limitações, o cirurgião defendeu que a tecnologia é segura e traz vantagens em pacientes bem selecionados. “Não há nada pior para esse tipo de cirurgia do que uma seleção inadequada. Mas, quando feita da forma correta, a robótica oferece benefícios reais. A chave é a escolha criteriosa do paciente”, conclui.
Ativismo por uma melhor jornada – O painel encerrou com a palestra de Julie Fleshman, presidente da Pancreatic Cancer Action Network (PanCAN), organização que se tornou referência mundial em advocacy. Julie emocionou o público ao relembrar sua própria história: “Todos os sintomas que eu sei hoje que eram de câncer de pâncreas não eram reconhecidos na época. Meu pai foi diagnosticado aos 52 anos e morreu quatro meses depois. Eu estava com raiva. Não entendia como nada podia ser feito, por que não tínhamos opções, por que não tínhamos esperança”.
Foi nesse contexto que nasceu a PanCAN, em 1999. “Quando comecei, você podia contar nos dedos de uma mão os pesquisadores dedicados e financiados em câncer de pâncreas nos Estados Unidos. Hoje temos uma comunidade vibrante, e os pacientes são três vezes mais propensos a sobreviver ao diagnóstico do que há 25 anos. A taxa de sobrevida em cinco anos passou de 4% para 13%. Ainda é inaceitável, mas mostra o quanto avançamos”
Julie ressaltou que a organização atua em várias frentes, incluindo financiamento de pesquisas, serviços a pacientes, advocacy e mobilização comunitária. “Nosso papel é ser catalisador. A PanCAN já investiu mais de 249 milhões de dólares em pesquisa, mas também somos um ponto de apoio para pacientes, familiares, médicos, cientistas, indústria e governo. O que nos diferencia é colocar o paciente no centro, trabalhando com todos os stakeholders para acelerar o progresso”.
Ela destacou ainda os desafios de garantir equidade de acesso. “Não podemos atender apenas quem vive perto dos grandes centros médicos. Temos que chegar também às áreas rurais, garantir que todos os pacientes conheçam seus direitos, suas opções de tratamento e os ensaios clínicos disponíveis”
O painel mostrou, em síntese, que transformar a jornada do paciente com câncer de pâncreas exige muito mais do que avanços técnicos ou científicos isolados. Exige integrar cuidados paliativos desde o início, explorar com rigor terapias de precisão, investir em tecnologias cirúrgicas seguras e ampliar a voz da sociedade civil para que políticas públicas garantam mais pesquisa, financiamento e acesso. Em cada fala, esteve presente a ideia de que ninguém enfrenta essa doença sozinho (nem pacientes, nem médicos, tampouco comunidades).