Caso da menina de 10 anos, do Espírito Santo, que fez aborto, provoca indignação em vários segmentos da sociedade
O recente caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio, no Espírito Santo, causou intensa indignação em muitos brasileiros e, também, surgiram manifestações obscurantistas com ataques de conservadores à menina que realizou aborto para interromper a gravidez provocada por estupro.
De acordo com matéria publicada em O Globo, a criança se mostrou aliviada ao saber da prisão do tio, suspeito de cometer o crime. “Ainda bem, porque o vovô pode sair para a rua agora”, disse ela, segundo o relato de uma enfermeira. Ela temia que o tio matasse seu avô e era essa ameaça que a impedia de denunciar os abusos que sofria, de acordo com o relato da avó a uma enfermeira.
Embora possa parecer algo inédito, a situação de abortos no Brasil é chocante: a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
O Portal Medicina e Saúde consultou a Sociedade Mineira de Pediatria sobre a situação da menina de Juiz de Fora. A seguir nota da entidade:
“A Sociedade Mineira de Pediatria, por meio de seu Departamento Científico de Ginecologia Infanto Puberal, expressa a sua profunda indignação e se posiciona institucionalmente e socialmente em relação à tragédia vivida pela criança de 10 anos, vítima de violência sexual crônica, que culminou em gravidez e fatos que desencadearam igual violência social. É sabido que as crianças e adolescentes que sofrem tal agressão vivem, muitas das vezes, o terror da violência sexual solitariamente, já que o abusador, em sua maioria, faz parte do âmbito familiar desta criança e adolescente. O fato repercute em suas vidas para sempre, podendo desencadear quadros de depressão, ansiedade, ideias suicidas, predisposição ao uso de drogas, além de extrema dificuldade de relacionar-se socialmente.
A criança em questão deveria ter tido seu direito IMEDIATO e CÉLERE do exercício da Lei, já que se configurou, além do crime de violência sexual, crime inquestionável de ‘Estrupo de Vulnerável’. E a resolutividade e celeridade também contribuem para que essas vítimas sejam menos expostas socialmente e tenham sua privacidade respeitada. Tal procedimento médico deve ser realizado sem juízo pessoal de valores de ‘outrem’, respeitando a Lei vigente em nosso país, em instituição médica segura, resguardando o futuro emocional e reprodutivo desta criança ou adolescente, minimizando os danos psíquicos e físicos que tamanha violência possa acarretar à sua vida. Respeito, proteção, acolhimento e resolutividade é o que deve ser priorizado nestas situações”.
Assina: Dra. Cláudia Barbosa Salomão | Presidente do Departamento de Ginecologia Infanto Puberal da Sociedade Mineira de Pediatria.
Para o Dr. Marco Antônio Rodrigues Freire Matias, médico-legista, Membro Titular da Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas-ABMLPM e Assistente Técnico do Hospital Vila da Serra, ouvido pelo Portal Medicina e Saúde, o caso da menina de 10 anos violentada por um tio e que engravidou, remete ao aspecto médico-legal do estupro. Segundo ele, a lei 12.015/2009, que alterou o código penal e trata de crimes hediondos, em seu artigo 213, define estupro como: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Com essa redação, explica, tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas de estupro, e mais, tanto a conjunção carnal ou o ato libidinoso são suficientes para caracterizar o estupro, fundindo-se no tipo penal”.
Há um agravante, afirma Dr. Marco Antônio, se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos. Houve outra inovação, a capitulação do denominado estupro de vulnerável, que é o que diz o Art. 217: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Na definição de vulnerável, explica, temos ainda “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Com essa nova redação, salienta o médico, a presunção de violência passa a ser absoluta, e não mais relativa.
“Portanto, no caso do estupro de vulnerável, a violência é real, mesmo nos casos alegados de consentimento, o que não se aplica. Aqui o caso apresentado da criança de 10 anos se enquadra. No caso do estupro de vulnerável, outra questão que é relativo à medicina legal, é a materialidade do delito, a prova do crime. Os médicos-legistas, os especialistas em medicina legal irão, no desempenho de suas funções, materializar a prova, autenticá-la e podem ainda chegar à autoria do crime, através do DNA do autor, que poderá ser extraído dos vestígios do crime. Por isso, é muito importante encaminhar essas vítimas para uma representação junto à autoridade policial, que tomará as providências legais, dentre essas a solicitação das perícias pertinentes”.
“A gravidez, como ocorreu com a menina em questão, é uma prova do estupro, pois pode ser em consequência de uma conjunção carnal ou de um ato libidinoso. Importante ainda que o aborto, autorizado pela justiça em situações como essas, deverá ter o produto desse aborto submetido a provas de DNA para elucidação da autoria, que será obtido na assistência à vítima, mas remetido ao médico-legista para o processamento do DNA”.
Outra inovação sobre o tema, informa Dr. Marco Antônio, foi a lei 13.931/2019, que em seu artigo 1º diz: “Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados”, e no § 4º: “Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.” Portanto, os médicos assistencialistas devem ficar atentos aos indícios dessas violências e fazer a notificação adequadamente”. Isto é extremamente importante, pois a lei 12.015/2009, determina que para os casos de violência sexual, o processamento ocorrerá mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, daí o papel da notificação dos serviços de saúde”.