Prevalência de demência é mais frequente em mulheres, segundo estudos
Especialista aponta que a sobrecarga de responsabilidades e o estigma em torno da saúde mental são fatores que levam à negligência dos sintomas
Foto: Pixabay
A demência e a doença de Alzheimer têm um impacto significativo na saúde global. Segundo o Consenso Delphi, há 2,7 milhões de pessoas vivendo com demência no Brasil. As projeções indicam que esse número atingirá 5,05 milhões em 2039 e 8,74 em 2049. O estudo “Relatório Nacional sobre a Demência: Epidemiologia, (Re)conhecimento e Projeções Futuras de 2024″ aponta que a prevalência é mais alta entre as mulheres, que representam 9,1% dos diagnósticos no país.
A endocrinologista e diretora médica da clínica Atma Soma, Alessandra Rascovski, de São Paulo/SP, foi uma das debatedoras do 2º Big Data ABRAz, evento que ocorreu em novembro deste ano e teve como tema central “A saúde da mulher no contexto da demência: dados necessários para desenvolver e implementar estratégias urgentes”.
Durante o encontro, Alessandra Rascovski destacou a importância de debates sobre a condição para avançar na compreensão dos fatores de risco específicos para a demência nas mulheres. Conforme afirmou, “o desenvolvimento de estratégias de prevenção e intervenção direcionadas permitirá não apenas reduzir a prevalência da doença, mas, também, melhorar significativamente a qualidade de vida desse público, que é especialmente vulnerável a essa condição”.
O envelhecimento é o principal fator de risco para a demência, mas, segundo a Lancet Commission, existem outros 14 fatores que também contribuem para o aumento do risco, sendo eles: níveis educacionais mais baixos, deficiência auditiva, hipertensão arterial, tabagismo, obesidade, depressão, inatividade física, diabetes, consumo excessivo de álcool, traumatismo craniano, poluição atmosférica e isolamento social na velhice, além de colesterol elevado e problemas de visão. Juntos, esses fatores são responsáveis por 40% de todos os casos de demência a nível mundial, sendo a deficiência auditiva, os níveis educacionais mais baixos e o isolamento social os de maior impacto.
Ao considerar esses aspectos, percebe-se que, para as mulheres, algumas causas externas podem ter um peso adicional. Muitas delas, além de cuidarem de si mesmas e de suas carreiras, assumem ainda a responsabilidade pelo cuidado de filhos, cônjuges, parentes idosos ou doentes. Esse acúmulo de responsabilidades, aliado ao estresse crônico e à pressão emocional, além da negligência com a própria saúde, impacta diretamente o bem estar cerebral ao longo dos anos.
De acordo com a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), as mulheres desempenham um papel predominante como cuidadoras informais primárias de pessoas com demência, representando cerca de dois terços. Esse cenário é ainda mais acentuado em países de baixa e média renda, regiões que, até 2050, serão responsáveis por 71% dos casos globais. Nesses locais, 90% dos cuidados para indivíduos com demência ocorrem dentro dos próprios lares, o que ressalta a importância das mulheres nesse contexto de cuidado domiciliar.
Alessandra Rascovski ressalta que esse acúmulo de tarefas, muitas vezes somado a má alimentação e a falta de atividade física, pode desencadear o desenvolvimento de outras doenças como, obesidade e diabetes. “Embora sejam muitos afazeres diários, eles não servem para fortalecer os músculos e levar saúde para o corpo, gerando apenas cansaço, fadiga e estresse, piorando também a qualidade do sono”.
Bárbara Rubim, cardiologista e uma das debatedoras também do 2º Big Data, enfatiza que essa rotina favorece problemas cardiovasculares e queixas como dispneia, dores torácicas e palpitações. Esses sintomas podem levar as mulheres a acreditarem que o estresse é a causa, dificultando o diagnóstico precoce da demência. “Inicialmente, a condição em mulheres tende a ficar camuflada, dificultando o diagnóstico. Por isso, é fundamental ouvir a paciente com atenção, compreender seu cotidiano e contar com o relato da família, para que seja possível identificar e tratar a condição precocemente”, complementa a diretora médica da Atma Soma.
Um estudo transversal, conduzido pelo Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP), avaliou 90 cuidadores familiares de pacientes com demência e trouxe dados marcantes sobre a atuação do público feminino. A pesquisa revelou que 83 dos cuidadores eram mulheres (92,2%) e que 56 (62,2%) apresentaram Transtorno Mental Comum (TMC), termo que se refere a um conjunto de sintomas não psicóticos que estão relacionados com quadros subclínicos de ansiedade, depressão e estresse. Além disso, 62 (68,6%) delas possuíam alguma ocupação, além de cuidar da pessoa com demência. O estudo também indicou que cuidadores com sobrecarga tinham 7,2 vezes mais chances de apresentar transtornos mentais comuns.
Demência e menopausa – A menopausa, período natural da vida da mulher, é marcada pelo fim da função ovariana e pela redução significativa da produção de hormônios, especialmente o estrogênio. Essa queda nos níveis hormonais pode ter uma série de implicações para a saúde, incluindo um possível impacto na função cerebral. Durante essa fase, o cérebro passa por mudanças neurológicas que podem resultar em sintomas como ondas de calor, alterações de humor e um leve declínio na memória e nas funções cognitivas. “Esses efeitos, embora geralmente temporários, têm semelhanças com os sinais iniciais de demência, visto que algumas áreas do cérebro, que são afetadas pela menopausa, também são as mesmas que apresentam alterações na doença de Alzheimer”, explica Rascovski.
A demência é uma das principais causas de incapacidade e mortalidade entre pessoas com mais de 70 anos, com impacto particularmente significativo entre as mulheres. De acordo com Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences 2024, das 16.211 internações analisadas, 65% corresponderam à população feminina e 34,7% à masculina. Esses achados corroboram um estudo epidemiológico sobre a mortalidade por Alzheimer no Brasil, realizado entre 2010 e 2019, que identificou uma maior taxa de óbitos entre indivíduos com 80 anos ou mais e maior prevalência no sexo feminino.
Embora ainda não existam estudos que expliquem a causa dessa ocorrência ser mais frequente entre as mulheres, muitos pesquisadores justificam essa correlação em função da maior sobrevida feminina e da maior taxa de mortalidade entre os homens. “Além dos fatores amplamente reconhecidos, existem questões sutis e muitas vezes ignoradas que têm grande impacto”, pontua a endocrinologista.
Durante o evento, as médicas destacaram a importância de uma abordagem holística nas consultas, para que os profissionais compreendam o contexto geral da paciente para adotar uma ação eficaz e preventiva. As debatedoras destacaram também a urgência de monitorar outros aspectos clínicos após o diagnóstico de demência. “Frequentemente, as famílias se concentram tanto no tratamento da condição que acabam negligenciando o acompanhamento endócrino, cardiovascular e ginecológico, entre outros. No entanto, esses processos fisiológicos continuam a ocorrer, e a falta de cuidados adequados pode agravar o quadro da paciente”, aponta Alessandra Rascovski.
Estigma social do diagnóstico – As mulheres, além de estarem mais vulneráveis à demência, enfrentam desafios adicionais que podem mascarar os sintomas e retardar o diagnóstico. Esse cenário destaca a necessidade de lançar luz ao tema e abrir espaços para discussões sobre a saúde mental e cognitiva da mulher.
Um estudo realizado pelo Coletivo Weber Shandwick revelou que a doença de Alzheimer é significativamente menos discutida em comparação ao câncer de mama, por exemplo. Entre maio de 2022 e abril de 2023, foram registradas 3.500 menções à doença de Alzheimer relacionadas a mulheres no ambiente digital, enquanto o câncer de mama recebeu mais de 190 mil citações no mesmo período. Um outro dado preocupante aponta que cerca de 20.600 menções à condição foram feitas em contextos pejorativos, sendo usadas de forma depreciativa em conversas no ambiente digital.
Para a Dra. Rascovsk, esse uso inadequado do diagnóstico como uma ofensa, não apenas descredibiliza a gravidade da doença, mas, também, contribui para o estigma em torno dela. “As conversas sobre demência e Alzheimer acontecem de forma majoritária na imprensa, onde o foco são os avanços e descobertas científicas. Mas é necessário ir além, intensificar esse debate em diversos âmbitos e levantar questões relacionadas aos pacientes e seus cuidadores”,observa.