Papai tem três rins: quando a realidade inspira pessoas a salvarem vidas
Troca de informações entre médicos, pacientes e familiares foi fundamental para que Inês Silva, esposa do transplantado Ramon, escrevesse livro “Papai tem três rins!”
O que realmente importa no cuidado de quem passa por um transplante de órgãos? Essa questão faz parte do dia a dia dos profissionais de saúde, que veem na proximidade com esses pacientes e seus familiares uma oportunidade de fazer a diferença. Enfrentar a longa fila e espera por um transplante ou, por outro lado, a difícil decisão de doar os órgãos de um ente querido que faleceu, são momentos em que a empatia se torna crucial. A humanização no atendimento proporciona novos significados para transplantados e doadores.
A relação médico-paciente não é apenas um protocolo, é um laço de confiança e responsabilidade mútua. É nisso que acredita o nefrologista Alexandre Bignelli, coordenador do Serviço de Transplante Renal do Hospital Universitário Cajuru/Curitiba/PR, que destaca a importância de enxergar o paciente além de sua condição clínica, valorizando suas histórias e sonhos. “A aproximação entre a equipe médica e os pacientes acontece de forma natural, baseada no respeito mútuo e na transmissão de informações claras e precisas sobre o tratamento. Essa conexão é fundamental para que os pacientes se sintam seguros e apoiados em sua jornada de recuperação, fortalecendo o vínculo de confiança, essencial para o sucesso do tratamento”, afirma o médico.
Palavras que transformam – A troca de informações entre médicos, pacientes e familiares foi fundamental para que Inês Silva, esposa do transplantado renal Ramon Lima, encontrasse a inspiração necessária para escrever o livro “Papai tem três rins!”. O diálogo e a confiança estabelecida com a equipe médica foram essenciais para que ela se sentisse encorajada a criar uma obra que não só ajudasse outras famílias a falar sobre o transplante, mas também introduzisse o tema da doação de órgãos de maneira acessível e lúdica nas escolas. “Ter um médico como Alexandre Bignelli, disponível para tirar dúvidas e transparente em todo o processo, me deu segurança para falar com as minhas filhas e, depois, escrever o livro”, relata, relembrando que, “quando o Ramon começou a fazer diálise peritoneal e foi incluído na lista de espera para transplante, tivemos dificuldades em encontrar livros infantis ou materiais que nos ajudassem a abordar o tema com nossas filhas. Foi somente após o transplante e a recuperação que surgiu a ideia de criar um livro infantil voltado para apoiar outras famílias em situações semelhantes. Nosso objetivo é promover a doação de órgãos, quebrar tabus e incentivar mais pessoas a dizerem sim quando necessário”.
Hoje, aos 42 anos, quem vê Ramon praticando corridas de rua não imagina o que ele enfrentou para voltar a ter uma vida normal. “Precisei superar limites e medos. Só depois de conhecer atletas transplantados é que percebi minha capacidade de retomar o esporte, que sempre fez parte de mim”, destaca. Foi pelo contato com eventos esportivos que o professor encontrou as pessoas certas para criar a 1.ª Liga Nacional de Transplantados, em parceria com atletas brasileiros transplantados de fígado, rins, pulmão, pâncreas, coração e medula.
Vidas retomadas – O susto de precisar de um transplante não escolhe idade. Letícia dos Santos, de 17 anos, viu sua vida virar de cabeça para baixo após uma grave crise de hipertensão, que trouxe uma notícia devastadora: apenas 3% de seus rins estavam funcionando. Internada imediatamente, ela iniciou a hemodiálise e teve que lidar com uma série de restrições e uma mudança drástica em sua rotina, que incluía não poder ir ao estádio assistir às partidas do time do coração. “O Coritiba é uma paixão desde a infância, e frequentar o estádio era uma parte importante da minha vida. Ver meu mundo mudar tão repentinamente me desafiou não só no aspecto físico, como também no emocional”, conta Letícia.
A notícia de que havia um rim compatível chegou no dia 28 de dezembro de 2023. “Foi ano novo e vida nova, literalmente”, brinca Letícia. Mais de nove meses após o transplante, a distância do estádio ficou no passado, e ela voltou a assistir às partidas de futebol de perto.
O lado de quem doa – Para que pacientes como Ramon e Letícia pudessem receber novas chances, outras famílias precisaram exercer a generosidade em meio à dor. Foi assim com a cantora Michele Mabelle que, após a perda repentina de seu pai por um AVC, transformou o luto em um ato de amor ao dizer sim à doação de órgãos. Ela também escolheu perpetuar a memória do pai com a música “Legado do Amor”, que reflete sobre a continuidade da vida: “Quando a vida se despede, um novo ciclo pode começar”.
“Enfrentar a morte é um desafio imenso, mas, após conversar com a equipe de captação de órgãos do Hospital Universitário Cajuru, onde meu pai estava internado, passei a ver a situação com um novo olhar. Como expressa a música que compusemos, a doação é uma vida que renasce e, em cada coração que bate, o legado do meu pai continua vivo”, compartilha Michele, que também é voluntária do hospital.
O caminho até o transplante – O Brasil desponta como um dos líderes mundiais em transplante e já retoma os índices pré-pandemia. Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), foram realizados quase 26 mil transplantes de órgãos, tecidos e medula óssea em 2023. Somente entre janeiro e março de 2024, ocorreram cerca de 6,7 mil cirurgias, sendo mais de 1,3 mil relacionadas ao rim. Dentro desse cenário, o Hospital Universitário Cajuru, que atende exclusivamente pelo SUS, é referência e já realizou 34 transplantes renais somente em 2024.
O transplante de rim é a única opção quando o órgão não responde aos tratamentos convencionais, como no caso da doença renal crônica, frequentemente causada por hipertensão e diabetes. A condição compromete a função dos rins, exigindo hemodiálise para filtrar os resíduos do sangue. Quando o dano é irreversível, o transplante torna-se necessário. “Uma equipe multidisciplinar trabalha para que os pacientes superem a dependência da máquina e recuperem a liberdade. Antes, a vida era limitada, com restrições alimentares e de líquidos, mas, agora, com o rim funcionando adequadamente, a independência é renovada”, finaliza o nefrologista Alexandre Bignelli.