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Quadros demenciais – como lidar com eles?

Dra. Maria de Mello: “no início dos quadros demenciais, a pessoa sofre muito porque sabe que está comprometida, não dá conta mais de agir como ela costumava agir. Assim, diante de perguntas que não tem como responder, ela se sente encurralada e angustiada gerando muito sofrimento.

Uma condição que vem assustando a população do mundo é o aumento do quadro de demências, em decorrência, principalmente, do avançar da idade. Embora não haja muitos dados estatísticos oficiais, relatos médicos dão uma ideia da gravidade dessa situação no Brasil. Atualmente, há 1,2 milhão de pessoas no país acometidas por demências. As projeções indicam que em 2050, a nível mundial, haverá cerca de 131 milhões de pessoas afetadas pela doença.

Para saber mais sobre essa realidade e o que é demência ou são demências, causas, tratamentos e prevenção, o Portal Medicina e Saúde entrevistou a professora afiliada da disciplina de Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina – UNIFESP, Maria Aparecida Ferreira de Mello, vice coordenadora do GT Inovação em Longevidade do Instituto de Estudos Avançados e Convergentes também da UNIFESP; Pós Doutora em Tecnologia Assistiva/University of Florida; Doutora em Ciências da Reabilitação/Tecnologia Assistiva/Geriatria/UNIFESP; Mestre em Ciências da Reabilitação com ênfase em Tecnologia Assistiva/ SUNY  at Buffalo, entre outros títulos.

Primeiramente, Dra. Maria de Mello, o que é demência ou o que são demências, podemos dizer assim, no plural? – Com certeza! Mas antes de conceituá-la, gostaria de falar sobre o processo de envelhecimento cerebral, porque ele ocorre. Assim, o leitor compreenderá melhor os quadros demenciais. Ao envelhecermos, há uma diminuição das conexões sinápticas no cérebro e dos genes responsáveis pela síntese das proteínas sinápticas, bem como dos potenciais excitatórios pós sinápticos e cooperação neuronal. Em um cérebro normal, do ponto de vista da cognição, com o avançar da idade há, assim, um prejuízo da memória espacial e associativa, como também da memória de trabalho e sua função executiva. Em outras palavras, a longo prazo, reduzindo o processo de memória.

Diante dessas dificuldades que vão surgindo, decorrentes do processo de envelhecimento normal, as pessoas vão criando estratégias para lidar com elas.  Dentro desse contexto, pode surgir quadros demenciais. Compreendido isso, vamos para o conceito: o que é demência?

A demência é um transtorno cognitivo maior e irreversível, caracterizado pelo declínio significativo em uma ou em mais áreas do funcionamento cognitivo – não é só memória, grave o suficiente para resultar em declínio funcional. O que isso quer dizer? Aquelas perdas fisiológicas que acontecem no processo de envelhecimento que acabei de citar, não trazem prejuízo no desempenho das tarefas do cotidiano. Mas, quando há um processo patológico e algum tipo de demência, as tarefas do dia a dia são de fato comprometidas. A gente chama esse quadro de declínio funcional. E esse declínio funcional nos quadros demenciais é progressivo e incapacitante, mas não é um aspecto inerente do envelhecimento.

Então, ficar demente não é típico do envelhecimento? Exato, mas quando isso acontece tem que buscar ajuda profissional, ajuda médica e tratamentos oferecidos por outros profissionais de saúde como Terapeutas Ocupacionais, Fonoaudiólogos, Fisioterapeutas e Psicólogos. A demência não tem cura, mas tem estratégias que podem amenizar os sintomas e tornar o dia mais fácil, menos sofrido, não só para a pessoa que tem demência, mas para seus familiares, cuidadores e etc., e essa pessoa poder ter uma vida ainda produtiva, ou seja, demência é muito diferente dos lapsos ou das perdas cognitivas normais.

Para caracterizá-la temos que ter pelo menos duas das funções a seguir, comprometidas: memória, linguagem, orientação espacial, capacidade de abstração, funções executivas, praxias (processo pelo qual planejamos nossas ações e movimentamos nossos segmentos corporais para alcançar um objetivo. Exemplos: Praxias ideomotoras: capacidade de realizar um movimento ou gesto simples de maneira intencionada. Praxias ideativas: capacidade para manipular objetos mediante uma sequência de gestos, o que implica o conhecimento da função do objeto, o conhecimento da ação e o conhecimento da ordem dos passos que levam a essa ação), e gnosias (capacidades que o cérebro tem para reconhecer, através dos nossos sentidos, informações adquiridas anteriormente, tais como objetos, pessoas, lugares, etc.). Assim, se a pessoa perceber que está tendo alguma perda cognitiva que está comprometendo o seu cotidiano, deve procurar um especialista para ver o que está acontecendo, quais as funções que estão sendo prejudicadas e como administrar essas perdas, por meio de intervenções não farmacológicas ofertadas por equipe multiprofissional especializada, para atenuar as perdas funcionais, melhorando o quadro, apesar da gente saber, como já disse, que é uma doença que piora a cada dia.

Como essas disfunções são diagnosticadas? – Primeiramente, através de uma anamnese extremamente cuidadosa, onde se vai buscar entender a cronologia dessas perdas cognitivas, a velocidade em que estão acontecendo e como isso tem impactado na vida da pessoa. É feito também um exame clínico, um exame neurológico – muitas vezes pede se exames de imagem, bem como uma avaliação neuropsicológica.

Uma observação importante é que em algumas consultas médicas incluindo avaliação da saúde da família podem ser utilizados testes de rastreios cognitivos, por exemplo, mini exame do estado mental. No entanto, esses exames não dão diagnóstico algum. Todo teste de rastreio é um indicativo que pode ter algo errado. Assim, a partir desses testes de rastreio, caso seja identificado algo anormal, o paciente deve ser encaminhado para uma avaliação diagnóstica completa.

                Há algum dado no Brasil sobre esta realidade? –  Muito pouco. O que sabemos são através de relatos médicos e estudos internacionais, por exemplo, 06% a 08% das pessoas acima de 65 anos têm demência de Alzheimer e esse percentual pula para 45% após os 85 anos.

O Alzheimer é a demência que mais assusta as pessoas, não é mesmo? – Sim, é verdade, mas além dela, há outros tipos, por exemplo, a demência a vascular, que causa entre 15% e 20% dos casos, e que, frequentemente, coexistem com a demência de Alzheimer, como, por exemplo a demência vascular + demência tipo Alzheimer, nesse caso classificadas como demência mista.

Temos também a demência por Corpos de Lewy, causada pelo acúmulo de proteínas, conhecidas como corpos de Lewy, no tecido cerebral. É a segunda causa mais comum de demência em pessoas com idade igual ou superior a 65 anos.

Então, saber qual tipo de demência que a pessoa tem é muito importante para prover o tratamento adequado.

Assim como a demência por Corpos de Lewy tem sua causa no acúmulo dessa proteína no cérebro, quais os fatores de risco das demais demências? – Considerando os fatores de risco para a doença de Alzheimer e demência em geral, podemos classificá-los em modificáveis e não modificáveis.

Os modificáveis são as doenças vasculares, a diabetes melitus, a hipertensão arterial, as lipidemias (gorduras no sangue), obesidade, tabagismo, vida sedentária, bem como a hipoperfusão cerebral (quando o cérebro experimenta uma diminuição do suprimento de sangue/oxigenação), os traumatismos cranioencefálicos, depressão, perda de audição e baixa reserva cognitiva (uma pessoa que se auto estimula pouco cognitivamente. Não é só fazer joguinhos de memória e palavra cruzada. É criar desafios cerebrais, ou seja, lidar com atividades abstratas complexas. Como exemplos de atividades cognitivas consideradas estimulantes para o cérebro, podemos citar:

  • Leitura – Livros, jornais e revistas (Melhora a memória, vocabulário e conhecimento)
  • Jogos de Raciocínio – Palavras cruzadas, sudoku, quebra-cabeças, banco imobiliário, entre outros (Estimulam a lógica e resolução de problemas)
  • Aprendizado de Novas Habilidades – Tocar um instrumento, estudar uma nova língua, pintura, escultura, tricô etc (Aumenta a plasticidade cerebral)
  • Atividades Sociais – Participar de clubes de leitura, jogos de tabuleiro em grupo, trabalho voluntariado (Promovem a interação social e comunicação)
  • Exercícios Mentais – Meditação e Mindfulness, jogos que desafiam a memória, como lembrar de listas de palavras (Melhoram a concentração e memória)
  • Tecnologia – Aplicativos de treinamento cerebral (Lumosity, Elevate, entre outros), cursos online: plataformas como Coursera, edX, que oferecem cursos sobre diversos temas (Oferece desafios cognitivos variados)
  • Atividades Físicas – Dança, Yoga e Tai Chi (Combinam benefícios físicos e mentais)
  • Desafios Intelectuais – Participar de debates sobre temas variados, escrita criativa (Combinam benefícios físicos e mentais)
  • Hobbies – Jardinagem e culinária, entre outros (Proporcionam prazer e aprendizado contínuo)
  • Estudos Formais – Cursos universitários, palestras e seminários, eventos educacionais (Expandem o conhecimento e habilidades).

Essas atividades não apenas mantêm o cérebro ativo, mas também proporcionam prazer e satisfação pessoal, contribuindo para uma melhor qualidade de vida durante o envelhecimento.

Já os riscos de desenvolver quadro demencial não modificáveis são: a idade é um forte fator, ou seja, quanto mais velho, maior o risco de ter demência, assim como o gênero sexual. Mulheres têm maior chance de desenvolver demências do que homens. Além desses dois, temos a história familiar – se já tem outros quadros de demências na família, então a sua chance aumenta também, raça – os brancos têm maior chance de apresentar quadros demenciais do que os negros, e a Síndrome de Down. Quem tem uma proteína chamada APOE-⍷ 4, também tem chances de desenvolver algum quadro demencial. Ela está envolvida no transporte e no metabolismo de lipídios, tanto no sistema nervoso central, quanto fora dele. Mais especificamente no caso da doença de Alzheimer, parece interferir no metabolismo e no acúmulo do peptídeo beta-amiloide, que é central na fisiopatologia da doença. Da mesma forma quem tem também a proteína amiloidose que, quando acumulada no cérebro pode contribuir para o Alzheimer.

Diante do exposto, há como retardar o processo das demências? Bom, a prevenção passa por a gente eliminar os fatores de risco modificáveis, como os vasculares. Se você é diabético, cuida muito bem dela. Se é hipertenso, tome a medicação corretamente para manter a pressão arterial sempre normal. Da mesma forma, importante cuidar do colesterol, controlar o peso (a obesidade é um fator de risco importante), não fumar e beber moderadamente (a bebida alcóolica é outro fator de risco importante para a demência). Outra maneira também é fazer atividade física, principalmente de atividade aeróbica (estudos recentes estão mostrando que aumentar a massa muscular é um fator que ajuda a prevenir demência).

Evitar quedas e/ou acidentes que podem causar traumatismo craniano, viver alegremente a vida (a depressão pode levar a um quadro demencial, se não tratada adequadamente), e checar a audição (a perda auditiva é um fator de risco para desenvolver demência).

Como mensagem final, recomento a todas as pessoas a se envolverem em atividades que desafiam o cérebro. Não precisa ser só jogos, quebra cabeças …. participem de outros desafios, por exemplo, trabalho voluntário, leituras, aprofundar nas discussões teológicas, se envolva com pessoas, crie conversas de nível mais elevado e participe de atividade mais complexa no dia a dia.

Meu pai nasceu em 1901. Ele morreu com quadro demencial, na posição fetal, em 1992. Começou a desenvolver demência em 1984, quando ele mesmo se percebeu perdido na fazenda em que viveu a vida inteira. Naquele momento, ele identificou que tinha algo errado e procurou um neurologista. Na época não fizeram um diagnóstico de demência e ele foi perdendo as funções cognitivas e as motoras também.

Meu pai tinha uma demência mista: Alzheimer e vascular. Hoje sei disso, mas na época, não sabia, ainda estava na faculdade, embora tivesse um irmão que é médico e ele também não sabia, porque quase não se falava disso.

Aprendi muito nesse processo, e o que sei é que no início dos quadros demenciais a pessoa sofre muito porque sabe que está comprometida, não dá conta mais de agir como ela costumava agir, e diante das perguntas que não tem como responder, ela se sente encurralada e angustiada. Isso gera muito sofrimento.

Uma sugestão que dou para vocês, leitores, é nunca falar assim: você não lembra de fulano, nossa você se encontrou com ele ontem. A pessoa não lembra e não lembra porque ela não quer, tem má vontade, é porque ela não se lembra mesmo. Então, seja paciente, mesmo que você tenha que repetir 50 vezes a mesma informação.

Ao deparar com uma situação assim, já adianta as informações, por exemplo: Papai, este é meu filho Lucas, seu neto, acabou de chegar … Não gere mais angústia. Ficar perguntando para a pessoa coisas que ela não sabe responder ou ficar falando, nossa acabei de falar para você, não adianta. Só vai gerar sofrimento para ambas as partes e o sofrimento e a angústia agudizam mais ainda a perda das funções cognitivas. Assim, quanto mais a gente criar um ambiente de conforto, de amor, de paz, vamos administrar todos os sintomas da melhor forma possível.

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