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Vida de Médico: conheça a trajetória da Dra. Lilia Nigro Maia, Diretora de Qualidade Assistencial da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo – SOCESP.

“Eu me apaixonei pela área de Emergência, de fazer plantões e atender pacientes graves”, recorda a cardiologista.

Para exercer a Medicina não basta fazer um bom curso. Sua prática exige talento, dom e doação. E essa descoberta nem sempre acontece rápido. Muitos já nascem sabendo que querem ser médicos. Outros descobrem este caminho ao percorre-lo, como foi o caso da Dra. Lilia Nigro Maia, que descobriu seu dom ao lidar com pacientes, já no terceiro ano de Medicina.

Ela formou-se em 1982, pela Faculdade de Medicina de Rio Preto – FAMERP/SP. Nos anos de 1984/1985 fez residência em Clínica Médica. Logo depois se especializou em Cardiologia pelo INCOR/SP, sendo contratada em 1988 pela FAMERP/Hospital de Base de São José do Rio Preto, onde foi chefe da Unidade Coronária (1990 a 2011) e onde, até hoje, é professora adjunta de Cardiologia da referida instituição. É também Diretora do Centro Integrado de Pesquisa (CIP) do Hospital de Base de São José do Rio Preto/SP, e Diretora de Qualidade Assistencial da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo – SOCESP.

Em virtude de sua trajetória, o portal Medicina e Saúde apresenta em sua coluna “Vida de Médico”, um pouco da história desta grande profissional da saúde.

Inicialmente, Dra. Lilia, quando e por que a senhora decidiu fazer Medicina?

Eu não fui aquele tipo de pessoa que nasceu para ser médica, que sempre pensou em fazer curativo nos outros. Pelo contrário, tinha um perfil de área de Humanas. Meus pais são professores universitários e eu cresci lendo muitos livros, literatura mesmo. Pensei em ser jornalista ou escritora. Depois comecei a refletir em fazer Psicologia e, aí, a minha mãe me disse: “olha você é estudiosa, consegue ser médica. Você pode ser psiquiatra, ganha melhor e vai ter uma vida mais estável”. Assim, eu segui o conselho dela, mas nunca fui para a Psiquiatria.

Na verdade, a Faculdade Medicina foi muito difícil para mim no começo, justamente porque eu era um peixe fora da água. Era uma pessoa da área de Humanas dentro de um mar totalmente técnico.  Eu só comecei a gostar de Medicina quando passei a ter contato com os pacientes, já no terceiro ano do curso. Eu me apaixonei pela área de Emergência, de fazer plantões e atender pacientes graves. Foi dessa forma que eu me encontrei e virei uma pessoa um pouco mais técnica, sem deixar de lado o meu humanismo.

Quais os desafios que encontrou no início de sua carreira?

Desde o terceiro ano da faculdade, eu decidi que queria seguir a carreira universitária, ficar no campus e ensinar. Direcionei toda a minha formação para isto. Assim, fiz a minha residência na FAMERP e depois fui para São Paulo fazer Cardiologia, já que eles queriam um cardiologista por aqui. Eu estava em dúvida entre Medicina Intensiva e Cardiologia e acabei optando por Cardiologia pela oportunidade que se abriu. Trabalhei alguns anos na enfermaria da Cardiologia, mas depois de muito esforço conseguimos montar uma Unidade Coronariana, que chefiei durante 13 anos. Não tive muitas dificuldades no início de carreira porque consegui trabalhar na Instituição, que era o meu sonho, fazendo o que eu queria.  A dificuldade foi realmente assumir essa opção e fechar as demais portas, apesar de vários convites para trabalhar na área privada.

Foi difícil ser mulher e médica, ou seja, a senhora sofreu algum tipo de preconceito no início de sua carreira?

Quando entrei na faculdade já havia uma divisão igualitária entre os gêneros: eram 32 mulheres e 32 homens. Éramos um grupo de mulheres fortes: a gente mandava nos homens (éramos representantes de classe). Brincadeiras à parte, posso dizer que nunca houve qualquer problema em relação à aceitação ou preconceito. Somente depois, na Residência, recém-formada, no começo da vida acadêmica, alguns pacientes me perguntavam se eu era a enfermeira, me pediam para chamar o médico, mas, com o tempo, os pacientes foram aceitando ser atendidos por uma mulher.

Na vida societária, a SOCESP é uma casa para mim. Estou na quarta diretoria e nunca me senti discriminada por meus colegas cardiologistas. A atual diretoria me deu a incumbência de idealizar e estruturar o SOCESP Mulher, um grupo de valorização das mulheres cardiologistas e das profissionais de saúde, já que a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo é uma entidade multiprofissional, que conta com nutricionistas, psicólogas, educadoras físicas, enfermeiras, farmacêuticas fisioterapeutas, dentistas e assistentes sociais. No SOCESP Mulher estou acompanhada de outras feras, como Ieda Jatene, Maria Cristina Izar, Suzana Avezam, Salete Nassif e Isa Pispico.

Na minha instituição, as classes têm cada vez mais presença feminina, apesar da predominância masculina na Cardiologia. Estamos abrindo caminhos em áreas, como a Hemodinâmica, que eram exclusivas dos homens. Mas sei que a minha experiência é fora da curva e relatos de preconceito contra a mulher existem aos montes, infelizmente.

A senhora fez algum curso no exterior?

Eu não tive essa oportunidade por uma questão financeira. A minha família era de classe média, e eu fui a primeira a me formar. Os meus pais precisavam ainda pagar a faculdade de meus irmãos. Após a Residência Médica, eu tinha que trabalhar para me sustentar, sem condições também de estudar no exterior, apesar de sempre ter tido muita vontade. Mas isso foi parcialmente compensado pelo fato de eu poder trabalhar há 20 anos na Pesquisa Clínica, começando com o Dr. José Carlos Nicolau, que era de Rio Preto, e com o Dr. Álvaro Avezum, que me fizeram os primeiros convites para trabalhar nesta área.  Viajei muito e continuo viajando para o exterior, sempre participei de reuniões com pesquisadores de vários países e conheci muitas pessoas, que são referências internacionais em suas respectivas áreas.

A senhora é envolvida com trabalhos sociais voltados para a comunidade?

Durante muitos anos, na fase ainda universitária, eu participava de um trabalho social em uma favela de Rio Preto. Depois, com as atividades profissionais e criação de filhos, não tive como conciliar. Mas de uns seis anos para cá, eu voltei a atuar de uma forma diferente, que é o ativismo político com ações de cidadania e ações sociais para comunidade. Na pandemia, essas ações se intensificaram com recolhimento de recursos para doação de cestas básicas e agasalhos. Nas redes sociais, onde tenho muitos seguidores, atuei e atuo na conscientização da importância da vacinação contra a Covid-19, do distanciamento social e da utilização de máscaras.

Em tempo de pandemia, como está a sua vida profissional?

Por ser cardiopata e ter 62 anos, fiquei em home office trabalhando bastante, por me envolver nas pesquisas relacionadas à Covid-19, além dos trabalhos de cardiologia, em que eu já estava comprometida. De uns dois meses para cá, comecei a ir, presencialmente, ao hospital e ao Centro de Pesquisa. Agora estou participando de tudo de forma presencial em tempo integral. Muitos trabalhos acadêmicos de pesquisa foram prejudicados por não podermos fazer muita coisa nos períodos mais críticos da crise sanitária, com os isolamentos mais severos. Já as atividades como palestrantes foram todas virtuais nesse período.

Quais as diferenças entre o curso de Medicina de sua época e o atual? A formação era melhor?

A maior diferença foi que peguei uma fase de transição. Todas as nossas escolhas, naquela época, década de 70, eram feitas pelo mecanismo da doença. No caso da hipertensão, por exemplo, se um medicamento era eficiente em reduzir a pressão, era ministrado e ponto. Já na década de 90, iniciou-se um movimento de medicina baseada em evidência, que revolucionou todos os conceitos. Comprovou-se que o paradigma anterior, muitas vezes estava equivocado. O medicamento que baixava a pressão não iria fazer, necessariamente, com que o paciente vivesse mais e poderia viver até menos, por conta de um efeito colateral específico. A partir dessas observações, pesquisas grandes foram iniciadas para que pudessem avaliar as condições clínicas do paciente, modificando toda a Medicina. Quem entrou na faculdade depois do ano 2000, estudou uma outra Medicina, com uma conceituação totalmente diferente. Passamos a fazer Medicina com um olho no paciente e outro no computador, vendo as diretrizes que eram elaboradas e os consensos médicos. Uma medicina mais democrática, não focada em poucos e grandes professores sabedores do conhecimento. A internet ajudou muito, principalmente aqueles que não podem ou não têm condições de participar, por exemplo, de congressos nacionais e internacionais. Mesmo antes da pandemia, as conferências on-line já eram uma realidade na nossa área.

Hoje o aluno tem mais visão humanística ou mais visão mercadológica?  Por que?

Uma característica dessa nova geração que faz faculdade, atualmente, é a preocupação com a qualidade de vida. Na minha época, era uma visão completamente diferente, o que se buscava era vencer, ser bem-sucedido, mesmo que o preço para isso fosse muito alto.  De uns 10 anos para cá isso mudou. E mudou até na escolha da especialidade que o médico vai fazer. Por exemplo, Oftalmologia e Dermatologia são áreas muito concorridas, onde as emergências durante a madrugada são mais incomuns. Isso tem sido cada vez mais forte entre os alunos, optar pela área conforme as características de cada especialidade.

Apesar de haver uma preocupação humanística muito forte nas universidades, na relação médico-paciente, muitas vezes o que predomina é o olhar técnico do profissional. Eu – que tive uma formação mais humanística, vejo isso de forma muito clara, e, infelizmente, apenas uma minoria se interessa pelo tema. Mas, embora, o médico sendo muito técnico pode e tem grande envolvimento com o paciente. A questão é que muitos médicos são sobrecarregados e precisam atender uma quantidade excessiva de pacientes, tanto no sistema público, quanto privado (em relação aos convênios). Isso faz com que a questão humanística fique um pouco de lado para que ele consiga atender toda a demanda daquele dia. Mas acho injusto o apontamento “mercadológico”. O que existe, na maioria dos casos, é um volume de atendimento grande demais.

A concorrência é muito grande? Como se destacar?

Quando um profissional está no momento de decisão, ele precisa levar muita coisa em conta e não somente o que gosta. Tem que ter uma visão pragmática e fazer algumas perguntas para si mesmo, como: que tipo de pessoa eu sou? Que tipo de cidade eu quero morar? Dependendo das respostas, deve analisar o grau de concorrência que terá e pesar todo esse contexto. Em Rio Preto, durante muito tempo houve déficit de geriatras, psiquiatras, oncologista. As pessoas precisam não ter somente uma visão romântica sobre a profissão, mas, acima de tudo, se diferenciar, ter algo para se destacar. Pode ser alguma coisa ligada à formação muito boa ou a maneira como trata o paciente, com grande envolvimento.

Dentro desta ‘nova medicina’ como fica a relação médico-paciente?

O paciente é a razão de tudo. Tudo o que um médico faz em sua trajetória é para melhorar a vida de alguém, seja curando ou fazendo com que o paciente viva melhor. Ao mesmo tempo que parece simples é de uma enorme complexidade. Eu sempre falo aos meus alunos: participar de uma atividade social, ter amigos e viver a vida, vai tornar vocês melhores profissionais do que ficarem com a cara enterrada nos livros o tempo todo. O médico não é só um técnico, ele vai lidar com pessoas. Ser essencialmente técnico pode comprometer a relação médico-paciente, se você não tiver empatia, sensibilidade e compreensão. A relação médico-paciente envolve a vida de forma geral, e ler um romance, assistir um bom filme, conversar com as pessoas pode ser tão importante quanto estudar o ciclo cardíaco. Quem não é assim, é aconselhável que busque outro caminho em que não tenha contato direto com o paciente. A Medicina é linda porque existem opções certas para cada perfil de médico.

Como é o apoio de sua família?

A minha família é especial, meu marido é médico também e foi meu professor. Ele fez escolhas semelhantes às minhas. Ele optou por ser professor universitário, assim como eu, e a admiração é mútua. Nós somos totalmente envolvidos no hospital, com relação à própria instituição e aos alunos, e temos destaque em nossas áreas de atuação. Temos quatro filhos, uma nossa e três dele, que são meus de coração também. A nossa filha tem um leve autismo que necessita de atenção especial, mas meu marido e meus filhos sempre me apoiaram em tudo, inclusive nas vezes que tive que me ausentar por viagens ou estudos. A minha família é o meu esteio.

O que poderia dizer para os jovens colegas que estão no caminho da Medicina?

A decisão de ser médico é tomada muitas vezes aos 16 anos, quando ainda estamos em formação. Eu, por exemplo, queria ser jornalista e hoje vejo que as minhas características não têm nada a ver com o jornalismo. Eu seria uma péssima repórter. Aos 16 anos, eu tinha uma visão poética e superficial do que eu era e quais seriam os potenciais que poderia desenvolver. A decisão tão precoce nos coloca em algumas armadilhas. Quando alguém escolhe ser médico precisa olhar de frente para alguns pré-requisitos essenciais. Não é fake news que precisa gostar de estudar e muito, a vida toda. Tem que haver uma preocupação com o ser humano acima de tudo. E, por fim, projetar o que irá fazer dali a 10 anos. A Medicina dá segurança financeira na maioria dos casos, com qualidade de vida. Não estou falando em ficar rico. Mas também te absorve bastante. Assim, o estudante precisa analisar todo esse contexto. Tenha consciência que escolhas sempre envolvem perdas e não se arrependa por isso. Temos que ser coerentes com as escolhas e certos do que estamos optando.

O que a senhora faz para relaxar? Tem algum hobby?

Eu sou a rainha dos hobbies. Eu tenho dificuldade de administrar tanta coisa que quero fazer. Eu sou ligada na casa, na minha família, brinco com meus netos. Gostou muito de ler, assistir séries e diversos entretenimentos. Eu fiz muito scrapbook durante cerca de 10 anos sobre viagens, momentos da vida, festas. Nessa pandemia eu desenvolvi um hobby para preencher o tempo em casa que é “mesa posta”. Todos os dias, seja no almoço ou no jantar, eu preparo uma mesa especial. Antes da crise sanitária, eu viajava muito e planejava a viagem estudando o destino, suas características, artes locais, a visita aos museus, seis meses antes. Por exemplo, eu escolhi conhecer Madrid muito mais para poder ir ao museu do Prado e Reina Sofia do que pela cidade em si. Eu gosto muito de história e adoraria fazer uma Faculdade de História. Acho que não devemos ser profissionais em tempo integral e a convivência com família e amigos é a maior alegria da minha vida.

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